O Trem de Lorca
 
        Lorca não devia ter entrado naquele trem, não devia ter acreditado nos ponteiros do relógio a não marcarem cinco horas exatas. Devia ter atendido ao pedido da avó e resignar-se a uma vida de carências, absurdamente descarecida.
        Lorca devia ter lembrado que era Sérgio e não era Lorca e que a Espanha era só um bico. A Espanha era apenas (apenas?) dois mil reais a mais para o mísero salário de quatrocentos reais que ganhava na sua terra, era as paredes e o telhado da casa que a família carecia.
       Antes de trocar o verde que te quero verde do seu país pelo lamento da guitarra flamenca, Lorca bem que esperou seis meses por um emprego melhor, por um salário justo, por uma vida que lhe desse a chance de dar uma casa, saúde e educação para o filho. Os seis meses de espera revelaram que ele não tinha o menor pendor para Jó. Afinal, nascera e se criara em São Tomé, terra de santo que só acredita no que vê.
        Lorca devia ter fechado os olhos e se recusado a ver a miséria a assombrar as noites de um país que já não amanhecia. Devia ter se contentado com as promessas e deixado de lado a descarecida mania de se achar no direito de ter uma vida digna, casa e comida farta à mesa. Mas Lorca era Sérgio e não era Jó.
        Quando entrou no trem, Lorca reconheceu Lorca na face de Pablos, Juans, Palomas, Pilares e outros Lorcas que também não deviam ter entrado naquele trem. Não deviam ter sido enviados rumo à antiga Babilônia para alimentar com sangue a fome insaciável de um imperador cowboy a mascar chicletes do alto de uma torre de petróleo.
        Quando os Lorcas entraram no trem, a sentença de morte já estava selada. Mais uma vez Lorca pagaria pelos desatinos dos reis de Espanha.
        Lorca bem que sentiu o bafo azedo de Pizarro a lhe soprar nas costas, bem que avistou as cabeças cortadas de Glauber Rocha rolando na plataforma como se o impedindo de entrar no trem. Mas, talvez por não conhecer a sanguinolência de Pizarro e a lucidez de Glauber, Lorca não deu ouvidos aos nefastos augúrios. Lorca não podia se dar ao luxo de entender a História e muito menos abrir os olhos para a lucidez. Era um trabalhador, um pintor de paredes que não costumava matar serviço...
        Quando o trem partiu repleto de Lorcas, Sérgio, que não era Lorca nem era Jó, viu da janela a Espanha de Torquemada a assinar sua sentença de morte.
        Lorca não teve tempo de avisar aos outros Lorcas que a História se repete sim, e que mais uma vez Lorca morreria pelos desatinos do poder.
        Foi nessa hora — que não eram cinco exatas — que Lorca lembrou da avó a lhe dizer que não carecia partir. Mas Lorca era Sérgio e não era Jó...
 
Marcia Frazão

« Voltar