O rato e o comedor de túnel

Squin,squin,squin,squindô-derrapagem-cascalho molhado,bituca de cigarro.O périplo do rato pelo cemitério São João Batista,com mortos nas patas tentando interromper-lhe a viagem por meio de erros e omissões, condensados no peso do ar estufado.(s)Qui,pro quoaralho,jogava-lhe na cara,o mundo. Ia descendo o declive em direção à rua ,entre cascalhos e gravetos,bitucas e lápides;era um rato de 30 cm de cumprimento sem o rabo (que não media menos de 10),rato um pouco gordo demais,talvez alimentado de cadáveres frescos [acho que ele tem como infiltrar-se nos caixões].De vez em quando parava diante do que pudesse ser um pedaço de pêra ou de cheeseburguer ,então punha-se a cafungar o corpo não identificado com muita aplicação,seus bigodes movimentando-se para cima e para baixo em deslocamentos minúsculos e sincopados,a pele do focinho enrugando-se e distendendo-se freneticamente.Se fosse comestível o que ele cheirasse,começava a mordiscar.É intrigante o contraste entre a mecanicidade dos seus movimentos,que denotam a banalidade de uma prática cotidiana, e o seu frenesi,quase desesperado.
Depois de saborear um dejeto qualquer,o ratinho andou devagar até o portão do cemitério ,estancou.Ele era iluminado pelas fracas luzes amarelas dos postes dispersos.Se alguém estivesse do outro lado da rua veria um rato um tanto borrado,mais ou menos ,de acordo com a acuidade visual do sujeito.Com 1 grau de miopia ,ver-se-ia apenas uma massa cinzenta ,vagamente delineada (a iluminação das nossas ruas é muito ruim),com dois graus talvez o rato se camuflasse na calçada ,tendo ao fundo uma parede encardida e também meio cinza.O ambiente nesse lugar é de difícil descrição, poderia falar de densidade sombria do esquecimento,da quase perfeita crueza do limbo ,ou da insinuação da aporia universal.De todos os modos,nem uma descrição precisa remete à imagem vista por olhos animados com emocões,nem um enlevo poético traduz o prazer suave de segundos vividos.É admitindo as limitações  da palavra que se faz literatura,o resto é conversa de Nélida Piñón.
O rato cansou-se  da espera diante do portão e seguiu andando pelo meio-fio,não corria como costumam fazer os roedores  urbanos ,apenas passapassava com as patas embotadas de perfídia reflexa(que lindo!).Agora tratava-se de uma subida,não muito acentuada,apenas um montículo até o túnel velho.Esse túnel apresenta um desvio para a direita ,bastante acentuado,de modo que o rato,entrando pelo lado esquerdo da rua e mantendo-se na mesma calçada ao longo de sua trajetória,viu o seguinte,vindo em sua direção,do outro  lado da rua:
não consigo matar meu sangue ,o sangue que morre a cada segundo de vida ,sou o Podre ,o Distante,de todas as fases que invoquei detonei apenas meus calos.Sandálias havaianas ,mortas ,dedos do pé destroçados ,sem `de quê` matar a sede  e nem a fome de acontecimentos,sensaboria de andrajos,sou.O inferno não é gelado nem canicular,o inferno senhores ,o inferno é morno e tropical.Gostaria de poder traduzir graficamente os pensamentos que não chegam a ser pensamentos ,que apenas insinuam uma possibilidade de  palavra mas que ficam suspensos no ar por serem ,talvez,apenas ar disfarçado de vibração cerebral.%%%%%%%%%%~~~``~~~~~~~~~~~~~~~~~~.percentagem de vagueza ,entre os números ,entre os vocábulos,embaixo,em volta ,entre e em cima dos conceitos.O tal do murmúrio eterno,que pode ser experimentado por qualquer organismo.No fim das contas é isso. O mendigo é vagueza personificada e concretude carnal no esquecimento cósmico e ,entre fragmentos de nada, sente e pensa matar ,matar o dia e a noite ,socorrer meu Santo Antônio e solicitar a passagem pro infinito ,de quandos em quandos ,achar lugar pra dormir,dormir de vez até amanhã ,de manhã não quero ser,detonar minha mortadela que chiquinho me deu na saída do bar,vamos lá ,buscar meu canto ,mas hoje achar meu buraco e COMER O TÚNEL.
  A essa altura o rato estava a alguns poucos metros do comedor de túnel,na outra  calçada e quase na mesma linha.Tinha um pedaço de bolo de aipim que uma vendedora deixara cair à tarde e acabava de saboreá-lo tranqüilamente ,ainda que  consciente da presença da figura atroz.O mendigo arriou as calças,aproximou-se da parede e começou a fazer movimentos lúbricos,pra frente e pra trás,comendo o túnel por um presumível buraco no concreto,buraco que o rato não via.Não gritava,apenas gemia suavemente.Podemos imaginar que o mendigo acolchoara internamente o túnel com algum tipo de borracha ou revestimento afim.Os ocupantes dos carros que por lá passam, geralmente ficam chocados,(o que é bem razoável),mas o interesse está na moderníssima prática sexual que se nos apresenta,uma modalidade inédita segundo me consta;depois da aceitação do homosexualismo,das surubas ,dos troca-troca dos casais,da pedofilia,do bestialismo,surge nas ruas do Rio de Janeiro a última palavra em liberação sexual,senhoras e senhores:o urban fucking ou cidade maravilhosa.É a pós-tropicália no seu paroxismo:a cidade fonte de prazer sexual,fodível fisicamente,entre ratos,urubus,traficantes,AR-15s,academias de letras e outras,bossa n bass e tais e tais.Não,Não,não,calma,nada de arroubos sociologizantes,nada de verborragia auto-condescendente,atenhamo-nos aos ratos.
   O rato,enquanto o mendigo se divertia,estava cansado de tanto comer,além de um tanto zonzo pelo efeito do ar poluído do túnel ,que recendia a diesel,gasolina e a álcool(menos,porque os Estados Unidos sabotaram o Pró-alcool,como se sabe(Filhos-da-puta))o coquetel explosivo deixava o cérebro do ratinho muito mais lento,uma sensação de bem-estar acompanhando a dormência,quase como se ele tivesse fumado um baseado.A onda ia batendo docemente,uma nuvem pairava na mente do roedor escroto,com promessas de palmeiras ,coqueiros e Cheetos bola,o ar estava morno,de um morno-éden quase frio-idílico=o inefável em palavras  fica ridículo,a própria palavra “inefável” é um contra-senso.Mas o rato tava na moral,sorvia os segundos de inação com uma avidez tranqüila de fazer inveja ao primeiro dos gurus tibetanos<um buraco negro de            . De repente ,uma ratazana gigantesca apareceu correndo na sua direção,o rato desesperou-se e correu para o outro lado da rua,onde J.F. fazia sexo.Um Monza 92 vinha a 100km por hora,e o bicho de alguma maneira conseguiu passar por baixo  dele e alcançar a  outra parede.
        O mendigo olhou pro rato,o rato olhou pro mendigo.O mendigo gozou no concreto,o rato ficou com nojo,o mendigo sentiu o desprezo nos olhos do rato que,sentindo sua indelicadeza para com o mendigo,olhou pro lado em sinal de respeito.O mendigo não se convenceu da sinceridade do pedido de desculpas do rato.Levantou as calças e sentou-se na sua cartolina,satisfeito e com um sentimento de culpa potencializado pela reprovação do roedor.Puto ,virou-se para o animal e perguntou:
-Qualé filha da puta,tu acha que eu te devo alguma,que porra de olhar é esse?
-Que isso cara,tu faz o que tu quiser, aí,tô nem aí.
-Tá nem aí é o cacete,teu olhar reprovador enfia no cú! Seu rato!Tu é muito do metido a besta demais pra um Indesejável,a qualquer barulhinho tu sai correndo se cagando e ainda vem me dar lição de moral,vai pro inferno.
-Em primeiro lugar,eu não considero essa categoria que você mencionou aí,Indesejável,você tá querendo me conferir sentimentos oriundos de experiências humanas.Saiba que nós,roedores, temos os nossos próprios sistemas de valores.  Quando você pronuncia a palavra cagão,eu,automaticamente,converto-a no meu cérebro no vocábulo que você conhece como “perspicaz”, se é que humanos da sua estirpe têm acesso a esse léxico.Você pode deduzir daí que minha reação à visão do ato sexual que você praticou,não corresponde ao que você está pensando;pelo que eu captei do humano,a palavra desprezo deve ter aflorado no seu cérebro,saiba que o que eu senti nada tem a ver com isso.Em linguagem humana,o que eu senti poderia ser melhor traduzido como “indiferença hostil” e...nesse momento, o mendigo,que se apoderara disfarçadamente de um pedaço de pau,esmagou a cabeça do rato.A agonia foi breve,apenas uns dez segundos de patinhas debatendo-se em vão e uns espasmos na altura do estômago.J.F. pegou o rato pelo rabo,balançou-o de um lado para o outro por alguns minutos,fez que ia engoli-lo.Em seguida,posicionou-o diante de si e pôs-se a observar seu corpo inerte,ficando assim por cerca de meia hora.Rato morto,rato morto,hahaha,gritos idiotas,[o mendigo não estava louco, mas sabia que era pra  estar e ,portanto, às vezes fingia loucura para si mesmo].Com gestos bruscos,dilacerou enfim o cadáver,entranhas,olhos pulando para cima ,para baixo,para os lados.
    E meus dedos que se põem a sangrar.

Álvaro Fagundes   

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