Teve uma época que eu cismei que tinha de comprar uma moto. Não sei por que. O carro me parecia desajeitado e lento, enquanto a moto era ágil e veloz. Os comerciais de cigarro talvez tivessem me convencido que caras de moto eram mais felizes e ficavam com as garotas. Os filmes mostravam a moto como símbolo da liberdade, da virilidade, da aventura, etc. As propagandas diziam que eram econômicas. Sei lá. Pedi ajuda a um amigo que entendia do assunto e fomos atrás das ofertas.
Na primeira que fomos olhar eu já aprendi pra caralho.
O meu amigo ligou a moto, acelerou bastante (os entendidos sempre aceleram
bastante, quanto mais você acelera maior o seu conhecimeno) e ficou
bem sério, uma cara assim de jogador de poker, ou de homem de negócios,
ou de auxiliar de homem de negócios. Depois ele fez uma coisa inacreditável.
Ele pegou uma chave de boca, ficou ajoelhado, encostou uma ponta da chave
no motor e a outra, pasmem!, no ouvido. Ora, aquilo transmitia confiança.
Com certeza um tal método deveria devassar os segredos mais íntimos
de qualquer motor. Não haveria ruído ou trepidação,
por mais sutil, camuflado, microscópico, que não se revelasse
ao meu amigo. Ele era um médico, era um bruxo, e a chave de boca
seu estetoscópio, sua bola de cristal.
Eu já não me surpreenderia se em seguida ele colocasse
o escapamento na boca e provasse o gás que saía dali, como
fazem os entendidos de vinho. Talvez pudesse identificar assim o teor de
água na gasolina ou a marca do óleo ou ainda a presença
de resíduos óxidos no tanque. Mas ele ficou em pé,
devolveu a chave de boca/estetoscópio e perguntou se eu não
queria dar uma volta. “Lógico”. Era comigo. Subi na moto. Dei uma
manobrada e levei o pé direito ao câmbio. Mas algo estava
errado.
Eu mexia no pedal, tentando engatar a primeira marcha. Por algum motivo,
o negócio não queria funcionar da forma que eu tinha visto.
Fui ficando constrangido, não pode dar bandeira de que não
entende nada. Mas o cara dono da moto percebeu e veio na minha direção,
devagar. Com todo o cuidado, da mesma forma que você se aproximaria
de um esquilo no parque, para que ele não fugisse. O cara só
faltou pegar na minha mão, e falou em voz baixa:
— Isso aí é o freio.
Caralho, do lado direito é a porra do freio, idiota. Só
me restou fazer um “Ah, é” com ar blasé, tipo claro que eu
sei que é o freio, então eu não saberia onde é
o freio?, está pensando que eu não conheço moto?,
é que eu estava pensando em outra coisa. O câmbio é
do outro lado, o pedalzinho preto emborrachado, é só pisar,
girar o punho direito, soltar a maçaneta com a mão esquerda
e andar.
Acabei não comprando aquela moto.
Na outra oportunidade que tive de testar uma máquina eu preferi
levar a um mecânico profissional. Amigo de um amigo, sabe como é.
O nome da peça era Serginho, falava como um verdadeiro malandro:
— É mano, certo, isso aí num dá nada, certo?
Olhou a moto, perguntou de quem era, torceu o nariz. Não fez
nenhuma mágica, não encostou a chave de boca em nenhuma parte
do corpo, nem sequer da moto. Olhou, acelerou (claro), e disse que não
era grande coisa mas podia comprar. Eu fui na dele e me ferrei.
Em pouco tempo de uso descobri, não sem muita desilusão,
que uma peça essencial da moto estava quebrada. Mais ou menos como
um jogador de futebol com problema no menisco. Além disso, a parte
elétrica não guardava qualquer vestígio da configuração
original. Consistia em um emaranhado de fios de diversas cores (cada fio
tinha diversas cores) emendados com muita fita isolante, formando um conjunto
realmente impenetrável. Quem não crê na minha palavra
pode perguntar ao mecânico da concessionária, que desistiu
de me ajudar.
Pensei que a desgraça estivesse completa quando percebi que
o radiador estava furado e eu tinha que colocar água todos os dias,
às vezes mais de uma vez por dia, senão começava a
cheirar queimado. Quando fui atrás de alguém para fazer uma
solda, a pessoa descobriu um sem-fim de rachaduras na própria estrutura
da moto. Resultado: ela precisou ser soldada inteira e depois repintada.
Desnecessário dizer que não encontramos a cor original, roxa,
e tivemos que optar por um azul claro patético. Mas aí os
problemas acabaram, talvez acredite o desavisado leitor.
Redondamente enganado, já que o radiador não estava sozinho
em termos de vazamentos. Também o tanque e o motor davam suas
pingadinhas, contribuindo para a formação de uma poça
nojenta onde quer que a moto ficasse parada. Durante uns dois meses, a
moto ocupou todos os meus pensamentos, todas as minhas energias e economias.
Talvez eu nem devesse contar da vez em que a moto foi guinchada. Eu
estava andando sem placa, sem luz de seta, sem retrovisor e sem farol.
Estava de capacete, mas o guarda me parou mesmo assim. Mostrei os documentos
e mostrei as peças que havia acabado de comprar para deixar a máquina
em ordem e colocar a placa. Garanti que o IPVA estava pago. Ele consultou
a central a respeito e foi informado, o que me deixou com um gosto estranho
na boca, de uma queixa de roubo.
— Que é isso, seu guarda, a moto é minha...
Eu só conseguia pensar no filho da puta que tinha me vendido
a moto e no filho da puta do mecânico que me mandou comprar. Mas
quando o guarda confirmou a informação a central corrigiu
o engano. “Nada consta”. Alívio.
— Pois é, nada consta, não dá pra me liberar?
Eu estava indo colocar a placa, estou até com as peças aqui,
libera essa.
Mas ele não estava ouvindo. Estava preenchendo a multa e chamando
o guincho. “Meu filho”, ele disse, “eu sou o único policial sério
desta cidade”. Ele disse isso mesmo. Juro. E eu tinha de ser parado justo
por ele. O único filho da puta de policial sério. Eu ainda
fiquei meia hora, debaixo de um puta sol, com todo mundo me olhando, pedindo
clemência pro único filho da puta sério da região.
Mas lá se foi a motoca, tomar chuva e enferrujar no pátio
da polícia.
Eu não desisti. Logo que tirei a moto do pátio passei
na casa de uma amiga. “Vamos dar uma volta”. Quem sabe a motoca não
me dava uma alegria, pra variar? Gatinha na garupa, vento no rosto, abraçadinhos,
adrenalina, etc. A moto como símbolo da virilidade, da potência.
Yeah. E não é que a mina aceitou?
Vamos lá. Monta aí atrás, segura em mim. Não
se preocupe em prender o capacete, essa coisa só incomoda. Eu não
vou deixar você cair. Liga a moto. Olha pra um lado, olha para o
outro. Acelera, solta a maçaneta com a mão esquerda, e vai.
Fomos. Saímos num pulo. Andamos três metros e batemos com
tudo em um poste.
Eu e a mina decolamos da motoca e aterrissamos no chão. Os capacetes
foram parar longe. Não dava pra acreditar. Meu primeiro tombo, e
eu levo alguém comigo? Mas que merda. Ela estava bem, mas ficou
deitada. Eu tentei levantar mas caí. Tinha alguma coisa errada com
meu joelho. Abracei a mina ali no chão, sem saber o que dizer. Não
conseguia me livrar de uma idéia idiota: que aquela era uma boa
oportunidade para lhe tacar um beijo na boca.
Marcel Novaes