A luz azulada da TV ilumina a sala improvisada do barracão. Zenóbio assiste, ao lado da mãe e dos dois irmãos mais novos, à novela. Os atores recitam um texto decorado em uma cena gravada, mas Zenóbio, na inocência dos seus sete anos, imagina que aquelas pessoas na tela estão conversando ao vivo, no mesmo instante em que seus olhos se mantêm arregalados.
De alguma forma, ele e sua família, sentados no sofá ou no chão, conseguem ver tudo o que aquela gente real está falando; deduz que a TV é uma espécie de fechadura por onde se pode espionar a intimidade dos outros. As reações da mãe - ora xinga de cafajeste o galã João Roberto, ora chora com pena da pobre Maria Adelaide - reforçam a impressão de que tudo o que acontece dentro daquela caixa de luz azulada é mesmo de verdade.
Pela manhã, Zenóbio ouve a mãe comentar com a vizinha o que tinham visto na caixa mágica e ambas dão palpites sobre o que acontecerá à noite com aquelas pessoas que aparecem - ele não sabe de onde, pois nunca as viu na rua ou na feira de domingo - nas telas de TV da casa dele e de toda a vizinhança.
A mãe quer muito que João Roberto crie vergonha na cara e volte para casa, para os braços de sua mulher, Maria Adelaide, que está grávida de seis meses e que quase perdeu a criança, só de desgosto. Ela diz que os homens são todos iguais, uns salafrários, aproveitadores, como o pai dele, que abandonou a família por causa de uma sirigaita do bairro. Zenóbio fica imaginando o que significam essas palavras de som engraçado. Siri e gaita, por exemplo, são duas palavras que juntas não fazem o menor sentido. Os adultos parecem falar uma outra língua e é até perigoso repetir algumas dessas palavras: podem ser proibidas. Várias vezes ele levou puxões de orelha e cascudos por falar palavrões, embora não tenha a menor idéia do que seja um palavrão ou uma palavrinha.
Um dia Zenóbio vê a mãe mais agitada do que de costume. Ela diz para a vizinha que aquele será o Dia D - e por que D e não E ou F? Zenóbio ouve calado ao lado dela. Sabe que o melhor é não contrariar a mãe com perguntas desse tipo. Ela já tem muitos problemas, como a máquina de costura, que vive no conserto. A mãe fala que João Roberto irá voltar, tem certeza, pois ele parece estar arrependido e a mulher com a qual ele tinha fugido já está com outro. A vizinha acha que é tudo uma pouca sem-vergonhice e a mãe concorda, é mesmo uma pouca sem-vergonhice fugir com a cunhada, aquela loura de farmácia
À noite Zenóbio vê a mãe ainda mais nervosa, roendo as unhas em frente à TV, repetindo que se Deus quiser tudo vai acabar bem, que Maria Adelaide merece, é uma boa garota, a pobrezinha não pode confiar nem na própria irmã! Mas a mãe fica decepcionada quando João Roberto vai atrás da loura da farmácia - não deve ser a farmácia do Seu Enofre, na esquina, Zenóbio nunca a viu por lá. Ela diz que não quer saber de pobretões como ele, que vai se casar com alguém que pode dar tudo o que ela sempre sonhou. João Roberto, descontrolado, saca um revólver e acerta o coração da falsa loura.
A mãe lamenta que gente como ela e Maria Adelaide parece que nasce pra sofrer. Desliga a TV e manda todos para a cama. Zenóbio fica paralisado, na penumbra, olhando fixo para a tela apagada. Uma idéia estranha toma conta de sua cabeça: e se do outro lado da tela existirem pessoas que assistem a tudo o que acontece em sua casa e no seu bairro? E se alguém estiver olhando para ele neste exato instante do outro lado à espera que algo diferente ou violento aconteça?
Zenóbio se aproxima da tela e sente o coração disparar: mesmo com a fraca luz que vem da rua, consegue enxergar, lá dentro da caixa ainda quente, dois olhos espantados.
Ricardo Borges