Laudiscélia e Claudinei


O nome era Laudiscélia, infelizmente. Coisa do pai e dão mãe, que resolveram se auto-homenagear na pobre criança. Ladislau e Célia. E só não foi Ladiscélia porque o escrevente do cartório deu uma ajudinha, colocando uma inexistente letra U na idéia inicial.
Assim ela carregou pelo resto dos seus dias aquele carimbo. Na adolescência, descobriu uma forma de burlar a realidade e passou a ser chamada de Lau, apelido que lhe permitia responder secamente: "Laura" diante da pergunta:
"Lau de quê?"
E assim satisfazia aos pais, mantendo uma suposta relação com o nome inicial, e agradava a si própria, vendo-se Laura diante dos amigos.
Para falar a verdade, tinha mais de Laudiscélia. Baixa, magrinha, sem peitos, o cabelo ralo, de tom indefinido, um rosto que, se não era feio, tampouco podia ser chamado de bonito: nariz pontudo, lábios secos, olhos assustados. No todo, certa aparência de pardal. E era este seu apelido no tempo das crueldades escolares.
Cresceu sem acontecimentos marcantes, exceto a vinda do Ladiscélio e do Ladiscler. Por sorte a família se encerrou aí. Nem queria imaginar o que a criatividade paterna poderia impor aos futuros rebentos.
Formou-se em contabilidade e foi trabalhar num escritório em cima da papelaria América, na rua do Ouvidor, centro da cidade. Entre números e folhas gastava os dias. Sua única emoção era a viagem no ônibus que a levava e trazia do subúrbio de Irajá. E o vício de comprar romances no jornaleiro – “Sonhos de amor”, “O príncipe desconhecido”. Ou mesmo alguns apimentados – “O passado me condena”, “Drogada aos nove, prostituída aos treze”. Mas nenhum príncipe, desconhecido ou não, parecia estar próximo do seu horizonte, assim como droga era coisa que nunca vira de perto, conhecia apenas de nome e de jornal. Pouco jornal.
Virgem aos vinte e nove anos, namorar pertencia ao mundo das parcas amigas com quem trocava confidências ralas, ouvindo com o coração na boca e faces acesas, as histórias alheias de paixão.
Quis o destino que Claudinei caísse nos seus braços para tornar realidade os sonhos de donzela. Na verdade, foi ela que caiu no colo dele, atrapalhada com os livros de contabilidade, a um solavanco mais forte do ônibus. Envergonhada, rubra, levantou-se gaguejando. Para sua surpresa, ele parecia ter gostado daquele contato inesperado e iniciaram uma conversa animada, que terminou com troca de telefones e engatou num namoro, a princípio tímido, depois cheio de fogo, nos motéis suburbanos.
Não que Claudinei fosse, nem de longe, parecido com os heróis dos romances. Dentuço, talvez para compensar a ausência de queixo, tinha testa estreita e olhos muito próximos. Em suma era feio. Mesmo.
Mas Laudiscélia não podia dispensar o amor possível e viveu aquela paixão com a intensidade da princesa esquecida, vendo em Clau, como o chamava carinhosamente, o herói pelo qual esperara estes anos todos.
Apresentou-o aos pais e ignorou as zombarias dos irmãos, que, não estando cegos pelo amor, mas espicaçados pelo ciúme, percebiam o futuro cunhado em sua verdade mesquinha.
Tudo parecia se encaminhar para o altar, glória máxima de sua vida, instante supremo em que entraria, toda de branco, na Igreja local, sob o olhar invejoso das beatas.
Mas outra vez o destino fez sua aparição. No dia marcado para o pedido oficial, cerimônia apenas familiar, já que as vacas financeiras andavam esfomeadas, o futuro consorte foi atropelado por uma moto ao descer do ônibus, na saída para o trabalho. Vinte dias de coma total, dez de penosa recuperação.
Laudiscélia esperou em vão o noivo, diante do rosto consternado dos pais e das chacotas dos irmãos. Envergonhada, desesperada, traída, viu as horas passarem, cruéis, sem trazer o antigo príncipe.
Como ninguém no trabalho de Claudinei sabia da sua existência, continuou, para o resto da vida, ignorando o acidente.
Nunca mais comprou romances no jornaleiro. Decidiu que a vida era assim mesmo, amarga. Com esta máxima definitiva, encerrou o coração numa redoma de onde jamais tirou.
Em vão Claudinei, saído enfim do hospital, tentou ligar para ela. Era sempre a ex-futura sogra que atendia e o despachava. Não soube se foi a pedido da moça, nem se interessou muito. Já estava enrabichado pela Lindonéia, uma enfermeira dentuça e sem queixo, que lembrava sua doce mãezinha falecida em Catende. Fôra melhor assim.
Laudiscélia passou a freqüentar a missa aos domingos. Depois às segundas, terças e quartas, até se transformar num dos pilares da Igreja de Irajá.
Verrugas com cabelos lhe cresceram no queixo e o coque se tornou penteado oficial.
O pai e a mãe morreram. Ladisclélio e Ladiscler lhe deram sobrinhos: Claudinélio. Laudisclélia, e Ladiscléria. Uma dinastia se formava para seu secreto desgosto.
Mas sempre que lhe perguntavam o nome, respondia, escandindo as sílabas: LAU DIS CÉLIA.
Era seu castigo e sua penitência.


Maria Helena Bandeira

« Voltar