Santa Maria da Terra

 
   No dia em que Maria nasceu, sem porquê nem quê, a terra deu de sangrar lá no Grotão das Moscas, onde penavam as carcaças dos desvalidos e amaldiçoados. Lugar seco, cruel e malvado, renegado até pelo Diabo.
    Maria nasceu bem na risca que separava o mundo dos vivos do charco dos assombrados. Nasceu de vida morta, de uma vagina seca que nem o chão a queimar a sola do cortejo que acompanhava o cadáver. Nasceu embrulhada em dois embrulhos: uma caixa de ossos descarnados e uma rede poída, rota e encardida.
    Parida sem contrações nem berro, Maria brotou no mundo bem no instante em que a primeira pá de terra seca foi lançada na cova. Brotou assombrada, sem susto, em meio a ladaínhas e velas.
    Talvez pelas chagas do Cristo da mãe ou pelo pouco de placenta que restara, a terra sangrou justo na hora em que Maria ia ser com a mãe enterrada.     Não sei se por crença num Deus que por eles não velava ou por medo de um Capeta que os renegava, o povo deu à Maria o nome da Terra.
    Como não nasceu filha de Deus nem enteada do Diabo, Maria cresceu sem milagres. Por falta de um pão que servisse de molde não o multiplicou e por excesso de mortos não teve tempo para ressucitá-los. Mas conheceu o calvário de perto, com os olhos que a terra há de comer.
    Seja pela ausência de milagres ou pela carência absoluta de maldade, Maria cresceu tão comum que um belo dia ficou invisível como a gente do seu povoado.
    Embora nos contos de fadas a invisibilidade seja um poderoso instrumento mágico, para Maria era corriqueirice mesmo. Era o estado máximo de uma vida desnotada, em branco, daninha como o mato.
    E assim invisível Maria da Terra foi erodindo e secando o pouco de água que tinha. Não deu frutos, não pariu rebentos, não brotou na primavera nem germinou no inverno. Penou calvários sem cruz, mas munida de enxada.
    Tal qual erva daninha que toma conta de terra ociosa —  que de tão ociosa só serve para alimentar o gozo de quem a possui —, Maria, sabe-se lá por quais artes de quem, um belo dia pariu um milhão de larvas.
    Não sei se por carência de mãe que ensinasse as coisas de mulher ou se pelo estado comum de substantivo sem gênero, Maria confundiu as larvas com filhos. Alimentou-as com o pouco de pirão de farinha que tinha e amamentou-as com as lágrimas da humilhação.
    Quando as larvas atingiram o tamanho certo para arar a terra que não era de Joana, nem de Pedro, nem de José, nem de Severina, nem de Antônio, nem de Raimundo, nem de Donana e sim de um alguém que de tão visível nem precisava aparecer, Maria deu uma enxada e uma foice para cada filho.
    Na invisibilidade comum dos assombrados, ninguém se assombrou com as larvas a arar a terra. No roçado não havia lugar para os assombros e o horror e a morte conviviam em assombrada comunidade.
    O Tempo foi escorrendo entre os calos das mãos de Maria da Terra até que um dia, sem ser convidado, adentrou pela casa acompanhado da Morte. Maria não se avexou pela miséria da casa e repartiu com as visitas o pouco de vida que ainda tinha.
    Maria morreu assim que os visitantes tomaram o rumo do Grotão das Moscas. Na manhã seguinte foi outra vez embrulhada em dois embrulhos: uma caixa de ossos descarnados e uma rede poída, rota e encardida.
    Sete dias após os vermes terem comido o pouco de carne que tinha, Santa Maria da Terra fez o primeiro milagre: no roçado, as larvas criaram asas e viraram borboletas.
    Não sei se pela santidade do milagre ou se pelo pólem que as borboletas espalharam no ar, os olhos do povo invisível olharam e se reconheceram no olhar do outro, se viram belos, viram a terra que era de todos e descobriram que tinham asas para voar.
    As borboletas? Ah, essas andam voando livres pelos campos e estradas, espalhando o pólem da visibilidade e agitando as asas em coloridas bandeiras...

Marcia Frazão        

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