História Mestiça
(...) Pero yo ya no soy yo.
Ni mi casa es ya mi casa (...)
(Federico García Lorca)
Era um casal já velho. Ele, magro e nodoso, ainda parecia alto, apesar da curvatura da coluna lhe haver tornado o corpo em arco, razão pela qual sua cabeça sentira-se no dever de se projetar para diante, na dolorosa tentativa de contribuir para o equilíbrio. Ela, roliça e nanica, ao mover-se semelhava algum títere tosco, articulado apenas dos joelhos para baixo. Suas coxas obesas, praticamente fundidas uma na outra como um todo indiviso, não deixavam espaço para qualquer movimento.
Pouco se falavam aqueles dois. Talvez, nem mesmo o fizessem. Se ocorresse algum caso passível de incomum necessidade, tratavam de se entender através de gestos duros, econômicos, ou grunhidos de assentimento e negativa. Entre ambos transparecia inquietante ausência de sentimentos, fosse ódio, amor, algum tipo de afeição ou simples desagrado.
Quase dezesseis séculos os separavam de Agostinho de Hipona, o qual entendera que “o tempo era feito de tempo e todo presente onde algo acorre é também uma sucessão”. Ampliando um pouquinho o raciocínio do santo, poder-se-ia supor que toda linguagem seria igualmente de índole sucessiva...
Os dois velhos já andavam bem próximos da neutra Eternidade e beirando a Iniciação Final. Talvez não mais que um fulgurante vislumbre da rosa prístina, tal qual Adão a viu no Paraíso: “em sua eternidade, não em suas palavras”. Seria mesmo? A razão daquele quase total mutismo talvez fosse menos sutil e mais fisiológica: ou, simplesmente, já não se lembravam ou lhes parecia demasiado o esforço de se exprimirem em uma terceira língua. Além do mais, depois de tantos anos juntos, as palavras entre eles já haviam perdido a função e o sentido. Deixa lá... As melhores explicações geralmente são triviais.
O nome dele era Arjun Singh nascera na Índia, em algum lugar do Punjab, em meados da penúltima década do século dezenove. As netas diziam que pertencera a uma das castas sacerdotais e assim o cremos, mesmo levando-se em consideração que se o avô houvesse nascido entre os párias, a história da sua origem dificilmente seria mudada. Mas isso nada importa. Ainda adolescente, Arjun fugiu de casa para acompanhar um circo que o deslumbrara. Ninguém jamais explicou quais habilidades circenses que a tal o habilitaram. Talvez eles precisassem de alguém para dar banho aos elefantes ou alimentar os tigres. Seja como for, sempre agarrado ao circo, o jovem indiano percorreu seu próprio país e os que lhe ficavam próximos; de fio a pavio. Um dia chegaram à Pérsia, e de lá, sabe Deus como, alcançaram a Europa através da Turquia.
A tournée demorou anos, mas finalmente, num dia qualquer de 1913, Arjun Singh viu-se desembarcado no porto de Nápoles com circo e tudo. Livrou-se da companhia e durante alguns meses vagou livre pela Itália. Comunicar-se não lhe era difícil. O rapaz falava todas as línguas e nenhuma, patuá indescritível, mas eficiente. Além disso, conhecia o idioma imemorial, usado entre machos e fêmeas. Aliás, esse ele falava muito bem e sem qualquer sotaque. Usou-o, nos arredores de Perugia, ao se aproximar de uma mocinha que lhe apetecera. Esta não ofereceu qualquer resistência e o tempo decorrido entre sedução e prenhez foi curto. Ele era tão belo quanto Kama, o deus do Amor, aquele, cujo arco florido tem a forma exata das sobrancelhas de uma linda mulher, mas que dispara suas setas quando quer e, quando o faz, nem o próprio Brahma é capaz de resistir. Pobrezinha... Não seria preciso tanto. Rafaella, pois assim se chamava a menina, nada sabia dos estranhos deuses da terra dele e nunca soub e! quem realmente a vitimou. Diante de si, vira apenas um homem moreno e viril, cujos olhos hipnóticos, talvez por conta de alguma antiga magia, tinham o mesmo e precioso verde das esmeraldas.
Curiosamente, não se pensou em lavar a honra da donzela com sangue e sua família aceitou, tranqüila, a reparação pelo casamento. A noiva, pouco mais que uma menina, ar brejeiro, conferido pelo leve estrabismo, não deixava de ter lá a sua graça. Seu maior encanto era o frescor natural, porém fugaz, que acompanha a juventude extrema. O noivo, por sua vez, além dos belos olhos, pouco tinha a oferecer. Neste pormenor, não se diferenciava grande coisa da gente de Rafaella.
Durante algumas semanas, os recém-casados se abrigaram sob o teto dos parentes, enquanto o ventre dela crescia depressa. A vida corria como sempre e, como sempre, difícil. Arjun, contudo, inquietava-se. Suas narinas sensíveis e acostumadas a identificar qualquer tipo de odor, sentiram o cheiro da guerra. Nada sabia sobre as divergências entre a Entente e a Tríplice Aliança, mas podia compreender e claramente, que aquilo não lhe dizia qualquer respeito. Acostumado a cuidar de si mesmo, suas decisões eram rápidas. Assim, numa tarde particularmente chuvosa, enquanto a família se revezava de goteira em goteira, ocupada a esvaziar baldes e baldes que se enchiam daquela água teimosa, em velocidade sempre crescente, chamou a mulher de parte e lhe comunicou que estava de partida para o Brasil.
Rafaella cravou os olhos negros no marido, apertou o peito com as duas mãos e ouviu, calada, o que ele tinha a dizer. Nada que ela já não intuísse. Os recursos bastavam para uma única passagem; ele, que de certo faria fortuna, dentro de um ano voltaria para buscá-la. Na manhã seguinte a chuva se fora, Arjun partiu com o sol e Rafaella ficou só entre seus parentes. Restaram-lhe o ventre, a crescer, e a dor, que a paralisava.
As semanas transformaram-se em meses até chegarem notícias, num envelope machucado. Não muitas, apenas um bilhete curto, pois as barreiras da linguagem grafada são mais difíceis de se transpor. Contudo, o papelucho passou de mão em mão e os garranchos foram decifrados. Arjun chegara bem, encontrara um compatriota e agora trabalhava para ele. Nada escreveu sobre o tipo de atividade que abraçara, talvez por conta do vocabulário restrito. Infelizmente, não se lembrara de acrescentar endereço para resposta.
Rafaella, apesar da prenhez adiantada, caminhou resoluta em direção à igreja. O ventre bojudo lhe empurrava o corpo para trás, mas ela apoiou as duas mãos sobre os flancos e se firmou. Avançou pela nave central e só parou diante do altar de Nossa Senhora das Dores. Ali, suas mãos deixaram os quadris para cobrir o rosto e ela chorou todas as lágrimas que havia guardado desde que Arjun partira levando o sol. Mais aliviada levantou os olhos e encarou a Virgem das Dores, que jazia estática diante dela, coberta pelo manto cor de violeta com debruns de prata. A Virgem também chorava como há de fazer, eternamente, por todas as mulheres que sofrem. Durante alguns instantes, a moça e a estátua se fitaram em silêncio. Rafaella observou atentamente as lágrimas da outra. Apenas duas, mas petrificadas pela dor imemorial. Então, quebrou o silêncio:
— Mãe, disse ela, a ti pertencerá a criança que trago comigo, seja macho ou fêmea. Farás dela o te aprouver, mas nenhum ferro lhe tocará os cabelos até que eu reencontre meu marido.
Findas as luas de praxe, a criança, feita nazarena pelos votos da mãe, nasceu discretamente. Rafaella suportou o parto e suas dores com a mesma discrição e, talvez, um pouco além. Ela pariu com a resignada mansidão dos animais, espelho da nossa própria humanidade. Em seguida veio a guerra e também passou. Esta, porém, fez grande estardalhaço. Sua esteira ainda arrastava morte e destruição até bem depois que se foi.
Enquanto isso, a nazarena crescia, embora não tão depressa quanto fora capaz, enquanto no ventre materno. Poder-se-ia inculpar sua intocada e exuberante cabeleira de lhe sugar a força vital, porém, o pão nosso de cada dia era cada vez mais escasso, diante da escara deixada pela guerra. Ainda assim, sua carinha miúda abria-se num sorriso, cada vez que a mãe fazia um breve intervalo no combate pessoal pela sobrevivência de ambas e com a menininha sobre os joelhos, cantava: “Upa, upa cavallina, cavallina, cavallùccio!”
Desde que a menina nascera, a mãe ainda não atinara com o nome a lhe dar. Informalmente, passaram todos a chamá-la “Ciccilla”; e Ciccilla ela acabou se chamando.
De Arjun, nada mais se soube. Mesmo assim, Rafaella manteve o costume de ir até a Igreja conversar com a Senhora das Dores. Conversar, não seria bem o termo, já que ambas apenas choravam juntas. Rafaella, porém, não estava pronta. Suas lágrimas ainda não se haviam convertido em pedra.
Enquanto isso, Ciccilla crescia. Não tanto em estatura, a qual estava sempre um passo atrás dos cabelos, mas em entendimento e empatia. Como seria natural Rafaella lhe contara, milhares de vezes, o pouco que sabia sobre Arjun e talvez, este fosse o único “conto de fadas” que ela ouvia. A menina, porém, ao contrário da mãe, quem sabe se por conta da sua dupla origem, sempre foi perfeitamente capaz de ver o pai com os olhos da mente. E era como o deus Kama que ela o via. Podia perceber até mesmo o arco do deus, em seu formato característico e sabia, sem que ninguém lhe dissesse, os verdadeiros nomes das cinco setas florais que ele portava: “Provocadora do Paroxismo do Desejo”, “Inflamadora”, “Embriagadora”, “Abrasadora” e “Portadora da Morte”. Ciccilla, então, compreendeu a mãe e se compadeceu profundamente.
Entretanto, vizinhos e parentes, dela não se condoíam menos. Depois de algum tempo, quando ficou patente que Arjun não voltaria e Rafaella continuava incapaz de se livrar da obsessão, porfiaram em descobrir o paradeiro do sumido; diga-se de passagem, tarefa já quase impossível neste Brasil de proporções continentais, nos dias de hoje, quanto mais naquela altura. Quem sabia escrever, escreveu. Embaixada, consulados, conterrâneos imigrados, amigos brasileiros, etc e etc. Assim, centenas de cartas cruzaram o Oceano numa e noutra direção; e o Brasil, de cabo a rabo. Infelizmente, a lentidão dos Correios, embora mais ou menos justificada nos dias que ora corriam, não é histórica sem razão. Por isso, entre carta vem, carta vai, passaram-se mais alguns anos.
E porque tudo nesta vida tem seu tempo próprio para acontecer, certo dia alguém deu com o fujão e tratou de escrever contando a boa nova. Salvo engano, e um nome como aquele dificilmente causaria problemas ao seu dono no quesito “homônimos”, Arjun Singh estabelecera-se no Espírito Santo, numa cidadezinha, nem tão longe assim de Vitória.
Quando tal notícia alcançou Rafaella, quase rompeu os últimos liames que ainda a mantinham, embora um tanto frouxamente, unida ao que convencionamos chamar ”realidade”. Por pouco, não endoidou de vez. Eternamente sonhando com o reencontro, ao longo da espera, conseguira juntar uma pequena quantia, mas não o bastante. Enfim, isso já não importava. Depois de tamanho empenho, formara-se uma verdadeira corrente de solidariedade em torno dela. Dinheiro, uma peça de roupa, até mesmo um belo salame, cada qual tratou de contribuir como pode e, em poucos dias, mãe e filha embarcavam rumo ao Brasil. Pouco sei da travessia, mas contaram-me da chegada.
Desembarcaram, no Porto do Rio de Janeiro, em 1928, provavelmente durante o Verão, pois Ciccilla, anos mais tarde, sempre que recontava as circunstâncias daquele dia memorável, referia-se ao “calor abrasador”. A mãe vinha vestida de negro e embrulhada num xale da mesma cor. Péssima escolha: além de inadequado aos trópicos, lhe acentuava a silhueta já maciça. Da mocinha, porém, mal se viam os pés. Além da pesada túnica de veludo roxo, os cabelos, intocados, desde sempre, ondeavam até bem abaixo da cintura, parcialmente cobertos por um manto, também roxo e com debruns de prata. Mãe e filha, suando em bicas, despertavam olhares curiosos, divertidos, mas, de certa forma, perplexos. Afinal, se a Semana Santa, com Procissão de Enterro, Verônica, Senhora das Dores e outros comemorativos, ainda estava distante, também não chegara o Carnaval... Bem depressa se formou uma aglomeração em torno delas, mas, felizmente, a família de compatriotas que as abrigaria no Rio, fora esperá-las no p! orto. A identificação foi imediata e, sem perda de tempo, levaram-nas dali.
A segunda etapa da viagem começou no dia seguinte, bem cedo. Partiram sozinhas, mas as compatriotas lhes providenciaram pequenos retângulos de cartolina, onde escreveram, em letras de forma, frases curtas, do tipo “onde é o banheiro?” ou “qual o nome desta cidade?”, mas preocuparam-se também em lhes fornecer endereços de outras famílias patrícias, que habitavam ao longo do trajeto. Embora nada dissessem, temiam que a aquela busca pudesse terminar de forma não muito favorável.
Rafaella, ainda de negro, pelo menos se livrara do xale. Mas o negro era mesmo sua a cor habitual. A guerra comera três dos homens da sua casa.O luto permanecera, mas nunca mais lhe deixara o coração por causa de Arjun. A mocinha, cônscia da sua qualidade de vítima sacrificial, envergava mais uma vez seu traje de Nossa Senhora das Dores. Risos e cochichos entre os demais passageiros eram inevitáveis, mas foram logo abafados pelo calor intenso e o espaço restrito. Quando a noite chegou, a jardineira já deixara longe a divisa entre Rio e Espírito Santo. Nem se deram conta. Durante o dia, perceberam que seguiam ao longo do litoral, pois, de vez em quando, avistavam um pedaço de mar. Mas agora era tudo breu e as duas, exaustas, cochilavam. Acordaram, assustadas, em Lins, onde a jardineira parou, num solavanco final, e os passageiros desceram.
Na pequena estação rodoviária, pouco mais que um telheiro, muita gesticulação e alguns cartões depois, compraram novos bilhetes para seguir viagem. Tinham fome e muita sede. Haviam conseguido entender que a próxima condução só partiria dentro de três horas. Havia ali mesmo um botequim ainda aberto. Pediram para usar o banheiro, passavelmente limpo, mais por conta do pequeno número de viajantes, do que, propriamente, pelo zelo do proprietário.
Sentaram-se numa mesa capenga, próxima ao balcão e esperaram. Trouxeram-lhes um jarro d'água e duas enormes canecas de café. O café era produto daquela região e seus habitantes se orgulhavam dele. Por isso, havia sido preparado na hora e foi servido quente e bom. Reconfortou-as. Rafaella abriu a mala, sacou o salame e começou a cortá-lo em fatias finas. A virgem, entretanto, apontou para o balcão, onde havia um prato com uma pilha de bolinhos dourados, de aspecto tão inocente, quanto apetitoso. Levaram-lhe um. BRE-VI-DA-DE, soletrou para ela o bodegueiro. Soletrado ou não, o nome não lhe dizia coisa alguma, mas a menina mordeu um pedaço do bolo. Era macio e de paladar agradável, mas estranhamente, ela não foi capaz de engolir. A coisa entupiu-lhe a garganta, recusando-se a lhe descer esôfago a baixo. Difícil explicar, numa outra língua, que as tais “brevidades”, também conhecidas como “embucha gato”, de tão secas, devem ser comidas aos bocadinhos e só podem ser engolidas com o! auxilio de muitos goles de um líquido qualquer. Ciccilla engasgou-se, tossiu, tossiu; veio a água; desentalou-se; chorou mansamente e depois, encostou a cabeça no ombro da mãe e adormeceu.
Acordou-a o frio da alba. Estremunhada, olhou para a mãe, que de olhos vazios fitava um ponto qualquer. Em breve a bodega agitou-se com a chegada de mais uns poucos viajantes; veio mais café, desta vez com leite, manteiga fresca e pão recém-saído do forno. Ciccilla olhou, desconfiada, para o pão. A forma e a textura lhe eram desconhecidos, mas o aroma, agradável. Partiu um pedaço, cautelosamente; viu que poderia engolir sem dificuldade; então, comeu até o último pedacinho. Soube-lhe bem com o salame ou, pelo menos, saciou, momentaneamente, o apetite dos seus quinze anos.
Pouco depois, mãe e filha tomaram a jardineira. O calor, uma hora depois do sol, já era abrasador e o rosto de Ciccilla cobrira-se de brotoejas. A viagem, foi relativamente curta e, não muito tempo depois, elas chegaram ao seu destino. Ou, talvez, o Destino tenha chegado até elas.
A cidadezinha era igual a milhares de outras do interior do Brasil. Uma igreja, pracinha arborizada, canteiros de flores fora de moda, com seus nomes antigos, casas amontoadas e um pequeno comércio. Viram logo a placa: JOALHERIA SINGH. Aproximaram-se, mas estacaram diante da porta. Por trás da porta envidraçada, lá estava ele, Arjun, o próprio, em carne e osso. Proseava, animado, com dois moços bem vestidos, que não pareciam fregueses. Repentinamente ele levantou os olhos e viu a dupla patética do outro lado do vidro. Encontrou, em primeiro lugar, o olhar da filha e foi assim que Ciccilla presenciou o momento exato em que Kama, o deus do Amor, apartou-se de seu pai para sempre, levando junto setas e arco florido. O deus partiu depressa, antes que o olho de Shiva o reduzisse a cinzas, zangado pela vergonha com que cobrira o panteão inteiro.
Ciccilla tornou a olhar para o pai; desta vez, viu apenas um homem alto, moreno, cabelos negros, levemente manchados de gris nas têmporas e já começando a rarear no alto da cabeça. Notou que os ombros dele pareciam levemente curvados, mas, provavelmente, havia sido neste momento que sua coluna principiara a entortar. Esquecido da loja saiu, porta fora, em direção à dupla. Nem abraços nem beijos, que já não eram necessários. De dentro da loja, os dois rapazes observaram a cena e intuíram seu significado. A família, entretanto, Arjun um pouquinho à frente, atravessou a praça. Ciccilla, cansada, marchava atrás, fechando o pequeno cortejo. O manto violeta e seus debruns de prata arrastavam-se na poeira.
Arjun havia prosperado no negócio das gemas, mas estava prestes a enriquecer de vez, pois os dois rapazes, como se soube mais tarde, eram seus quase futuros cunhados. Gente abastada, dona de quase todas as fazendas de café da região. Arjun levou a mulher e a filha para Vitória. Não havia tempo para grandes descansos, pois recomendava a prudência que tomassem boa distância do lugarejo. Lá chegados, ele ultimou seus negócios e o trio tornou a partir, desta vez, em direção das Minas Gerais. Ciccilla, feliz, livrara-se da túnica e do manto e os cabelos extraordinários, agora também em liberdade e tão contentes quanto sua dona, lhe escorregavam ombros abaixo.
Sem abandonar a bacia do Rio Doce, onde se localizavam as lavras que alimentavam seu negócio, Arjun Singh estabeleceu-se numa outra cidade pequena, feita de ladeiras, não muito distante de Belo Horizonte, mas longe o suficiente da noiva capixaba e da sua, mui justamente, enfurecida família.
O clima do novo lar era diferente. Fazia frio e a neblina matinal mergulhava tudo em fantasmagórica imprecisão, persistente, até mesmo quando o sol já subira vários graus no horizonte restrito. Entretanto, tão logo o avanço da manhã a expulsava em definitivo, via-se perfeitamente a montanha, que a cavaleiro da cidade, dominava paisagem com seu pico altaneiro, inteiramente de ferro. Era o Cauê, a rebrilhar de luz. O Convento de Nossa Senhora das Dores ficava no alto de uma das ladeiras, bem defronte ao colégio para moças, dirigido pelas freiras. Convento e colégio eram ligados por um túnel que passava por baixo da rua, que por isso, só parecia adquirir alguma vida ao início ou término das aulas. Tanto Irmãs, quanto meninas, além de escondidas pelos altos muros das edificações, quando transitavam, faziam-no através do túnel, por baixo da terra, como as toupeiras.
Ciccilla e seus cabelos foram entregues às freiras e a vida cenobítica não pareceu desagradá-la. Tão logo completou a idade mínima, deu por findo o noviciado e fez os votos perpétuos, numa cerimônia fechada. Neste dia, seus cabelos foram tosados e o sacrifício se consumou. As madeixas de Ciccilla eram demasiado bonitas para serem atiradas ao fogo, por isso, foram recolhidas do chão da capela e habilmente costuradas até formarem a magnífica peruca que, daí em diante, passou a cobrir a cabeça de Nossa Senhora das Dores.
Arjun Singh e Rafaella recomeçaram a vida e tiveram mais três filhos, que por sua vez cresceram, casaram-se e lhes deram netos. Continuou com o negócio das pedras e foi também notável ourives. Porém, envelhecia e, em breve, as gemas do seu mister roubaram resto da luz que lhe restara nos olhos e ele não pode mais trabalhar. Os dois velhos foram morar, então, com a filha caçula, esposa do único dentista da cidade. O genro recebeu-os com a mesma delicadeza e bondade que o haviam tornado querido por todos. Era também poeta, e tão logo conseguia livrar-se das bocas dos pacientes, corria para seus versos ou para suas glicínias, cultivadas com esmero e justamente afamadas em toda a região. Por sua vez, o sogro, numa tentativa de matar o tempo, passara a criar galinhas.
Naturalmente as cercas divisórias entre os quintais não seguravam coisa alguma. Entretanto, a vida ali era inocente e ninguém se importava. Muito menos as galinhas que, volta e meia, trançavam de um quintal para o outro.
— Vovô Arjun! — chamavam as netas, rindo-se por antecipação, pois conheciam a resposta — aquela galinha carijó não é daqui!
— Galinha in quintal meu, galinha meu! — sentenciava o velho.
Rafaella, cada vez mais obesa, tinha agora a face, antebraços e mãos, impiedosamente tomadas pelo lentigo. Vista de longe, sua pele se tornara tão castanha quanto a do marido. Mero detalhe. O problema estava no diabetes, que na velhice passara a achacá-la, obrigando a família a restringir-lhe os doces e as batatinhas fritas, que ela tanto gostava. Já inteiramente senil, decodificava aquilo como pura agressão e chorava. Consternada, a família tentava consolá-la:
— Chora não, mamãe !— acudiam filha e genro. Mas de nada adiantava. Os olhos vesgos de Rafaella, enormes, por trás das lentes dos óculos, estavam sempre lacrimejantes. As netas preocupavam-se também:
— Ah, Vovó, por que você está chorando?
Esquecida da razão, ela chorava mais ainda e respondia:
— Hoje é dia da Mãe!
E de certa forma, estava correta. Todos os dias o eram.
Maria Inês Drummond Fortes