Eu voltei
(Uma conto rápido e rasteiro sobre a neurose)
Eu voltei mais pra saber como é que ele estava, que por causa da falta que ele fazia. A curiosidade mórbida me matava. Será que ele morria? Será que ele sofria ou ficava doente?
— Eu ainda amo você — arrisquei o cinismo, porque sabia que se não abrisse espaços, nunca ouviria o que queria ouvir. — Voltei.
— Entendo.
— O que você entende?
— Entendo que tenha voltado e entendo que me ame.
Engraçado que ele não olhou pra minha cara dessa vez. Ele sempre olhava pra mim quando queria começar a me ferir ou maltratar. Confesso que fiquei preocupada com a primeira vez que ele foi imprevisível. Sabe, era uma luta de opostos imantados, sempre doloroso e no entanto inevitável, mas normalmente, quando eu voltava atrás, ele me olhava um olhar superior, dizia alguns insultos, porque ainda sentia raiva, eu fingia me humilhar e ele acabava cedendo. No início, quando isso acontecia, a gente ficava numa boa por mais alguns meses até o próximo desentendimento forjado conscientemente por um de nós. Com o tempo os desentendimentos foram ficando menos espaçados e as pazes também, mas irremediavelmente eu voltava, ele me olhava, me insultava, eu me fazia de pobre coitada, dizia que o amava e tudo voltava ao normal. Dessa vez, porém, ele não me olhou.
— E há alguma coisa que você não entenda?
— Sim.
Eu gelei. Eu não sei o motivo, mas havia alguma coisa muito errada naquele novo. Fiquei calada esperando alguma reação que não aconteceu. Eu lembro, foram minutos intermináveis, que pareciam aqueles instantes que ficam na memória guardados em câmera lenta.
Eu sempre soube que ele me amava e a certeza é que me deixava tranquila para tripudiar. Ele também sempre soube que eu o amava e por ser tão óbvio ele se dava ao luxo de me mandar embora. Inventávamos razões onde não haviam porquês. A força desse amor era a propulsão para a medição de força e poder, na verdade era como se só estivesse bom se estivesse ruim. Guerra.
Não cabe aqui discutir a doença e a utilidade da guerra, mas identificar a neurose é sempre interessante ainda que isso não signifique cura. Saber que ele tinha certeza sobre o que eu sentia me fazia insegura, logo, para medir o quanto o que eu sentia era recíproco eu o feria na intenção que ele sofresse. O nível do seu sofrimento seria a avaliação do tamanho do seu amor. E quanto mais amávamos, mais sofríamos. A necessidade de saber do quanto e do como nos amávamos, a necessidade dessa medida e de sua reciprocidade nos fazia exímios lutadores em ringue de luta livre e nos tirava qualquer culpa ou incômodo em torturar o outro, ao contrário, era necessário atingir o outro!
Eita círculo vicioso...hehehehehehe...Eu amava e por amar queria ser amada. Para saber se era amada eu precisava sentir no outro o medo de me perder;
quando o outro sofria, eu tinha a certeza que era amada e a certeza me fazia amar mais; amando mais eu me sentia insegura e tinha que fazê-lo sofrer mais, para ter a certeza que seu amor crescera com o meu... Parâmetro amor-dor; uma rima fraca e pobre para poesia mas incrivelmente perfeita para neuróticos incapacitados para a maturidade. O tamanho da dor era a medida do amor.
Eu tossi nervosa. Sabia que devia dizer alguma coisa, mas inexplicavelmente aquela era a primeira vez, que eu não fazia a menor idéia sobre que frase de efeito eu devia tirar da manga. Aliás, nenhuma frase de efeito me ocorria naquele instante. Era como se um leve pânico começasse a tomar conta da situação. Podia ser que fosse tudo. Eu só não suportaria o que começava a ficar nítido com aquele silêncio. A nossa neurose habitual era nosso jeito de nos arrumarmos e, claro, o costume e o hábito faziam as coisas serem confortáveis ao seu modo.
Havia alguma coisa, que desta vez ele não entendia! Ele não olhava pra mim! Ele não olhava pra mim! Ele não olhava pra mim!
Quebrou-se o silêncio ainda sem seu olhar se voltar.
— Eu só não entendo pra quem você voltou.
Quanto mais amávamos, mais sofríamos. Mas a recíproca nunca acontecera de fato.
Patrícia Evans