Meias cor-de-rosa

Adriana tinha acordado tarde e estava ainda de pijamas. Ela tem 14 anos e está sentada na cama, encostada, abraçando as pernas dobradas. Olha fixamente para a parede, um olhar vidrado de quem está com o pensamento longe. Contrai e relaxa pausadamente o dedão dos pés, envoltos em meias cor-de-rosa. Não parece particularmente procupada, tem apenas o ar ausente de quem teve um pensamento interessante e resolveu segui-lo, mais ou menos como quem segue uma borboleta colorida.

A chegada do gato a traz de volta, e ela esboça um sorriso à guisa de cumprimento. Ao vê-la esticar as pernas, o gato sobe na cama e se aninha ao seu lado. “Olá, Ernesto, dormiu bem?”. Ela acaricia o gato no pescoço, e ele levanta a cabeça de olhos fechados, com evidente prazer. Lentamente, ela deixa a mão cair de lado, enquanto com a outra tira bolinhas do pijama na altura do joelho. Tem novamente um ar distraído. Estamos num sábado e o dia está lindo, Adriana pode ver um triângulo de céu azul na janela. O gato lhe morde a mão, implorando mais algum afago. “O dia está bonito, não está, Ernesto? O que me diz de fazermos um longo passeio a cavalo? Ou então podemos ir nadar, se você não tiver nenhum outro compromisso”. Ela tira a meia do pé direito para esfregá-la no rosto de Ernesto. O gato ora morde a meia, ora usa as garras para prendê-la. “Tem certeza de que não quer passear comigo? Vai ficar aqui deitado o dia todo, não é? Desse jeito você vai engordar, Ernesto. Nunca vi uma ergométrica do seu tamanho, mas talvez um pouco de esteira dê jeito nessa sua barriga enorme”. Ela decide soltar a meia, que recebe uma lambida de Ernesto.

Com o canto do olho vê a figura da mãe na porta. A mãe sabia se mover sem fazer barulho.

— Adriana, você não vai sair dessa cama hoje? Eu não sei como você consegue ficar tanto tempo na cama, fazendo absolutamente nada.

— Eu já vou levantar, mãe.

— E esse gato em cima da cama? Deitado direto no len çol . Se ao menos a cama estivesse arrumada.

- O Ernesto não solta pêlo, mãe. Nós já vamos levantar, não é, Ernesto?

A mãe, dona Lúcia, fica quieta alguns instantes, a fim de mudar de assunto. Passa o peso do corpo de uma perna para outra e cruza os braços.

— Você chegou tarde ontem.

Adriana continua brincando com Ernesto e a meia cor-de-rosa, sem levantar a cabeça. Cruza as pernas e se inclina para a frente.

— Não pense que eu estava dormindo, eu ouvi muito bem você chegar. Eram quase duas da manhã.

— Eu sei, respondeu a garota, ainda de cabeça baixa. O que você estava fazendo acordada até essa hora?

— Isso não vem ao caso , mocinha. Eu quero saber é onde a senho ri ta estava.

“Na casa da Marcia”. Adriana agora segura a meia fora do alcance do gato, tentando fazê-lo ficar em pé. Ele tem olhos muito azuis.

— Na casa da Marcia. Até duas da manhã.

—É. Eu fui até lá pegar um CD emprestado, mas nós ficamos conversando. Sabe quando a conversa parece que não vai acabar nunca, porque um assunto tem tudo a ver com outro? Eu vi que estava ficando tarde, mas é que a conversa ainda não tinha acabado. Falando sério.

“Eu preferia que você voltasse pra casa mais cedo. Não pode deixar um pouco de assunto para conversar no dia seguinte? Eu fiquei esperando você pra gente assistir àquele filme”. Enquanto fala dona Lúcia entra no quarto e se dirige à estante. Arruma com cuidado os porta-retratos. Adriana olha as costas da mãe em silêncio, esperando que ela continue.

— Ouvi dizer que esse filme é muito bom. Fiquei te esperando para ver.

— Mãe, deixa eu me vestir. Preciso voltar na casa da Marcia agora de manhã, porque de tarde ela vai viajar.

— Já não conversaram tudo on tem?

—É que eu acabei trazendo o CD errado. Preciso devolver agora de manhã. Você não quer deixar eu me vestir?

Dona Lúcia não faz caso do pedido da filha. Continua encarando a estante, em silêncio. “Você precisa tirar o pó desses livros, Adriana”, diz finalmente. A filha não responde. “Eu queria que você conversasse mais com seu irmão”. A garota passa a mão pelo cabelo. “Falando sério, mãe, eu queria me vestir. Depois a gente conversa.”

— Você sabe que ele não entende muito bem as coisas. Eu queria que você conversasse com ele. Ele é seu irmão.

- Eu sei, mãe. Eu sei.

— Você é mais velha, e entende melhor as coisas.

A garota passa novamente a mão pelo cabelo. “Tá bom, mãe, tá bom.” Ela fica em pé enquanto fala. “Agora você vai ter que deixar eu me vestir, senão eu pego a minha roupa e vou me vestir no banheiro”. Dona Lúcia apenas faz um trejeito com a boca, que denota o absurdo da idéia.

— Não precisa ficar nervosa, só estou querendo conversar . Você chegou tarde ontem.

Adriana não responde, apenas conduz a mãe para fora do quarto e fecha a porta. Fica apoiada na porta fechada com a cabeça entre os braços. Observa atentamente os dedos do pé sem meia. Gostava do próprio pé, mas não gostava de fazer as unhas.

Troca de roupa, apanha a bolsa e desce as escadas para sair. Passando pela cozinha, escuta o chamado da mãe. Dona Lúcia está encostada na pia, de costas para a filha, lidando com a preparação do almoço.

— Já vai sair?

— Vou até a casa da Marcia, já disse.

— Venho, mãe. Eu venho almoçar em casa.

A mãe está cortando cebolas. Corta fatias bem finas, que se desmancham em vários anéis.

— Seu irmão está brincando na rua, diga pra ele vir aqui pra dentro.

— Tá bom. Então até mais.

- Espera. Você pode me trazer um vidro de maionese?

— Posso, mãe, eu posso trazer um vidro de maio nese .

—Ótimo. A maionese acabou faz tempo e eu não tive tempo de comprar. É tanta coisa na cabeça da gente.

— O que você vai fazer pro almoço?

— Ainda não sei.

— O pai vem almoçar?

— Ainda não sei.

Dona Lúcia termina de cortar a primeira cebola. Pega uma outra e começa novamente. Agora corta fatias mais grossas. Passa as costas da mão pelo rosto.

— Ainda não sei.

Marcel Novaes

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