O Tucano de Ouro
Desde criança ele escutava com atenção aquela história. Poucos tiveram a graça de presenciar o vôo encantado. Um desses privilegiados fora mestre Januário. Mas o velho caiçara nem precisava dessa ventura, pois, homem abençoado que era, já nascera bafejado pela boa-sorte.
Os antigos garantem que, a cada sete anos, o Tucano de Ouro sobrevoa os céus da Juréia. Quem consegue avistá-lo é contemplado com sete anos de felicidade. Ele mora, desde o princípio de tudo, no Morro do Pogoçá, cuja escalada desafia até o mais destemido dos homens. Bandos de ferozes mamangavas guardam o sopé do maciço. O vôo do tucano, que se alça a altura que nenhum outro consegue alcançar, ocorre na Primavera e somente a poucos São Bom Jesus concede a graça de contemplá-lo. É o que contam.
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Gustavo estava certo de avistar o tucano. Pelas suas contas, já era época de o pássaro alçar vôo sobre aqueles ares. Sabia que não poderia perder essa oportunidade, pois outra só dali a sete anos; e não estava disposto a esperar tanto assim.
Há tempos vinha se preparando para esse grande dia. Todos na vila o consideravam um jovem de boa estrela. Ora, ele não nascera justamente no dia em que mestre Januário avistara o Tucano de Ouro, vinte e um anos atrás? O nascimento em data tão especial prenunciava um destino auspicioso. Agora, quando atingira a maioridade – que coincidia com a época em que o pássaro encantado deveria realizar seu aguardado vôo –, agora era a hora de tirar a sorte grande de avistá-lo.
Planejou minuciosamente sua caminhada até o Morro do Pogoçá. Pretendia ficar nas imediações o tempo que fosse até o pássaro alçar vôo, nem que isso demorasse vários dias. Prevenido, tratou de encher a mochila de mantimentos.
Naquele primeiro dia, sua espera foi em vão. Verdade que avistou outros tucanos, que revoavam sobre as matas com suas plumagens douradas rutilando ao brilho do sol quente da Primavera. Mas o tucano encantado não dava os ares de sua graça. Tinha certeza que o pássaro cruzaria o céu com seu belo vôo e ele estaria ali para contemplá-lo e ser abençoado com sete anos de felicidade. Não desgrudava os olhos do morro e somente quando a noite silenciosa baixou seu manto sobre o local é que resolveu descansar da dura vigília.
Seu sono não foi tranqüilo. Teve pesadelos arrepiantes a noite toda. Também quem não teria, dormindo ao relento e sendo atacado por famintos pernilongos?
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Apesar da boa estrela que todos lhe atribuíam, nada em sua vida dera certo até aquele dia. Nunca conseguira as coisas que desejava, a despeito da fé que sempre devotara aos santos, especialmente à Senhora de Guadalupe, sua madrinha. Fora preterido até mesmo no amor sincero que dedicara a Ana Rita, bela e fogosa caiçara de seus dezesseis anos, a mais disputada por aqueles lados. Nem os peixes graúdos que pescava além das ondas, e que deixava numa cestinha todas as manhãs na janela do quarto da menina; nem as pencas generosas de brejaúvas, que ela adorava e que ele ia buscar lá no meio do mato; nem as fieiras de mariscos-da-pedra, que ele catava no Costão da Juréia, e que a mãe dela preparava com esmero – nem isso, nada mesmo, faziam-na retribuir o seu amor.
É bem verdade que tinha a hora que quisesse o amor leal e prazeroso de Maria Rita, irmã da outra, não de toda feia, apesar de lhe faltarem alguns dentes na arcada superior e de ter os dedos dos pés esgalhados como raiz de abricoteiro. A formosura que se fizera pródiga em Ana não quis se repetir em Maria, o que admirava a todos, pois as duas vieram da mesma fonte – seu Apolinário e dona Arminda. Não podia negar que os momentos passados junto de Maria Rita, com as motucas e os borrachudos ferroando suas nádegas, não eram tão ruins assim. Maria Rita de beleza tinha nada, mas na arte de amar um homem poucas se lhe igualavam.
Já era hora de dar um rumo em sua vida. Vinte e um anos é idade suficiente para um homem ter uma definição nítida da vida. Uma coisa ele decidira: que teria a todo custo o amor de Ana Rita. Outra coisa: que seria feliz ao lado dela. Para isso, tinha que presenciar o vôo do Tucano de Ouro. Ora, mestre Januário não lhe garantira que já estava na época de o pássaro mágico deixar o Morro do Pogoçá, onde mora desde que o mundo é mundo, e cruzar o céu da Juréia? Aquela seria sua única chance. Não pretendia esperar por mais sete anos.
No segundo dia, também não foi dessa vez que o pássaro dourado decidiu aparecer. Passou todo o dia sentado sob uma árvore de modo a ficar com o morro sempre na mira de seus olhos. Nunca percebera o tanto de pássaros belíssimos que existiam naquelas matas. Conhecia o pio de cada um, desde o papagaio-chauá até o tucano-de-bico-preto. E tucano era o que não faltava por ali. Até mesmo um casal de ararinhas azuis, que começavam a rarear por aqueles lados, conseguiu avistar entre os galhos de uma árvore, na outra margem do rio. Mas o Tucano de Ouro, mesmo, nada.
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E assim uma semana se passou. A longa vigília minava seu corpo. De noite, não conseguia dormir direito por causa dos pernilongos e, durante o dia, tinha que ficar de olhos arregalados. Qualquer descuido e perderia a chance de ver o pássaro.
No oitavo dia, não agüentava mais de cansaço. Pela hora do almoço, depois de comer uma posta de parati frito, acompanhado de um punhado de farinha manema, ao se deitar sob a sombra refrescante da árvore e tentar fixar os olhos sonolentos no morro, não agüentou mais e dormiu profundamente.
Ao despertar, muitos dias mais tarde, havia perdido a noção das horas. Olhou assustado para todos os lados, como se quisesse saber quanto tempo transcorrera. Passou a não no queixo e assustou-se com os fios de barba, que denunciaram não terem sido poucos os dias em que ficara desacordado. Quanto tempo se passara – uma semana ou mais? E o Tucano de Ouro, que fim levara? Teria realizado seu vôo espetacular?
Praguejando contra os céus, mandou às favas a sua boa estrela. De que ela adiantava, se o seu amor por Ana Rita, e sua felicidade junto dela, teriam de ser adiados – para dali a sete anos?
Roberto Fortes