Vinte e quatro horas antes, Mohamed beijou a mae e cada um dos nove irmaos mais novos; e eles, esperançosos, não choraram. No bote, apertado entre 17 corpos suados e tensos, em pé, buscou o céu oculto pela neblina e a lembrança do avô poeta recitando o épico “A Gata Negra”, que fala da sombria solidao humana. Ele o interpretava magistralmente em celebraçoes públicas e reunioes familiares. Observando olhos, bocas, maos, formas fantasmagóricas que se escondem e se mostram na névoa, comoveu-se com uma mulher de chilaba azul-turqueza e rosto tapado, agarrando-se a uma criança de colo. O seu olhar fulminante escondia um grito. Atravessando o Estreito de Gibraltar habitado por golfinhos e sereias famintas de carne humana, despediu-se da branca Tânger. O perfume particular da cidade cheirava a coisa antiga, confundindo-se com o perfume selvagem e apaixonado da terra cigana.
Mohamed deixou uma dívida de 1500 euros, que será cobrada pelo dono da embarcaçao, em dez prestaçoes mensais, diretamente a sua miserável família. Antes, tentou por duas vezes o visto para entrar legalmente no continente europeu, e não houve conversa, tampouco apelo, sendo negadas as súplicas sem explicaçao. Aos 21 anos, falando quatro idiomas, e dono de extraordinária beleza que atrai estrangeiros ávidos por sexo, além de seus próprios companheiros, que o curraram algumas vezes sem muita resistência, Mohamed vivia com o sonho de tornar-se artista de cinema na Itália ou França. Portanto, deixou a poética Chechoaouén, no alto das montanhas, sem dó nem piedade, e quando o marcado rosto materno crispou-se, afirmou convicto: “Não se preocupe, ganharei dinheiro e darei uma vida melhor para todos vocês”. O pai fez a mesma aventura dois anos antes, em um bote idêntico ao que utilizou como transporte aquático, e nunca mais se soube dele ou dos 34 imigrantes que o acompanhavam. Com a roupa do corpo e o jóia de prata como únicos bens, tremendo de frio, alucinado pelo vento forte e as violentas ondas do mar Mediterrâneo, Mohamed cantou com toda a força um antigo cântico berbere ensinado por sua avó. Imediatamente, o capitao da frágil embarcaçao exigiu silêncio. “O que quer? Não percebe que a Patrulha está alerta para qualquer ruído?”, censurou.
Às doze da noite avistou a costa: uma praia deserta, montanhas e as luzes longínquas de Tarifa. A súbita claridade provocou incômodo e excitaçao. Surgindo o barco patrulha no horizonte, Mohamed não pensou duas vezes, mergulhando na água fria e nadando o mais rápido possível. Tocou as rochas, escalando o monte até um caminho elevado que descia bruscamente para um bosque em que cresciam alfazemas silvestres, flores brancas, algumas oliveiras e centenas de pinhos. Deitado debaixo de uma árvore, ao lado de um cavalo negro e de duas garrafas vazias de vinho, dormia sobre o estômago, profundamente, um adolescente bêbado. Mohamed procurou despertá-lo; não conseguindo, retirou toda sua roupa, um traje de “campero”, vestindo-o; partiu cavalgando. Sentiu-se elegante, irresístivel e irreconhecível naquele disfarce. A rodovia chegava a uma feira profana, na entrada da cidade, que celebrava a Virgem de la Luz. A paisagem encheu-se de garotas vestidas de ciganas e homens a cavalo, em ruas e praças suntuosamente iluminadas. Abandonando a montaria, o garoto gastou parte do dinheiro encontrado numa carteira em um restaurante povoado por centenas de pessoas barulhentas. Comeu duas codornizes, fumando um cigarro a seguir. Passeou pelo parque de diversoes e no tiro-ao-alvo, por volta das duas da madrugada, encontrou Pedro. Este o olhou fixamente com seus grandes olhos verdes e Mohamed devolveu o olhar. Estudou seu rosto, lenta e calmamente, com atençao. Produzia a imprensao de ser um bom menino rico e caipira. Tinha a pele de pêssego, os dedos como tentáculos, um brilho febril nos olhos. Convidou o estrangeiro para compartir uma jarra de rebujito, uma mistura de vinho doce e refrigerante de limao. Tomaram quatro delas e logo, já embriagado, sem causa alguma que levasse ao assunto, Pedro contou-lhe sobre o pai violento assassinado dois anos antes pela própria esposa; a irma menor de idade, Aracelli, estuprada por um gringo drogado, que fugiu. Ele narrou cuidadosamente essas histórias dramáticas, sorrindo, abraçando o novo companheiro pela cintura e pedindo ao barman mais uma rodada da bebida típica andaluza. “Eu ainda matarei a esse filho da puta que fodeu minha irma”, completou. Mohamed se chocou. Era como observar a alguém despojar-se de um disfarce e ver debaixo algo horrível. O espanhol escondeu a dor doentia em uma fácil, lânguida, pouco profunda e por vezes ambígua, conversaçao. Quando terminou de virar a taça de líquido amarelado, se encostou na máquina de cerveja do balcao, soltou uma baforada de fumaça e disse:
- Sou um homem que sabe das coisas. Seria capaz de adivinhar toda a sua vida se tivesse vontade. Tenho pouca idade, vivo em uma fazenda, porém aprendi rápido as coisas da vida. Vamos dar uma volta no meu carro.
O rosto do marroquino, repousado, secreto, não demonstrava qualquer receio. A aurora despontava quando chegaram à parte baixa de um bosque margeando um rio. Pedro desligou o carro, terminou de esvaziar a garrafa de uísque e, tonteando, deu alguns passos para urinar com abundância, mantendo o pau de fora depois de acabar. De pé, via-se o espanhol em toda sua imponente estatura e fortaleza. “Quer morar aqui para sempre?”. Não houve resposta. “Tenho algum dinheiro para gastar ao meu modo. Posso ajudá-lo”, continuou. Deu a volta, abriu a porta do lado onde estava sentado o marroquino, aproximando suavemente o seu pau. Ao aceitar a carícia, Mohamed se viu subitamente com um revólver na testa, sacado do porta-luvas. Pedro o obrigou a tirar a jaqueta, a camisa branca, as botas, a calça e a cueca, e o fez caminhar. Tomou um par de tragos de um pequeno vaso metálico, atando os pulsos da vitíma. Umas gotas de suor deslizaram pelo corpo moreno. “Um puto marroquino enfiou a sua tromba - assim, grande como a sua -, na xoxota cabaço de minha irmazinha”, disse a voz dura e cinzenta. Ouviu-o como um grito agudo e irreal, permanecendo calado. Depois de um momento, perdeu a noçao da realidade, a mente vagando pelas imagens lúdicas do avô, as ruas apertadas de sua cidade, os filmes antigos no velho cinema, os fumadores de haxixe, os banhos de rio, o pai prometendo mandar buscá-lo e a caça ao coelho. Nesse novo país ele era o coelho preso em uma armadilha. “Necessito ver sangue. Tenho que ver sangue”, gemeu o carrasco. Tudo foi rápido. Foi penetrado seguidas vezes com violência, atado à oliveira sagrada e capado. Deu-lhe bom-dia e retirou-se, deixando-o morrer lentamente.
O corpo brilha ao sol, de uma cor azul-marinho. “Já é suficiente, Paco. Vamos enterrá-lo aqui mesmo. Será melhor não complicar as coisas”, decide um dos policiais. A luz solar, ao infiltrar-se por entre as árvores fechadas, desenha brilhantes linhas sobre algo que havia sido um belo homem. O cenário, formoso e alegre, produz a impressao do nascimento de um dia cálido.
Antonio Júnior