Tempo Revolto
O dia amanheceu com os cavalos relinchando lá pelas bandas do canavial, no piquete de capim-gordura. Partem em disparada com a cauda nas costas; empertigam-se majestosos e o tropel oscila, indo e vindo pela manhã. No horizonte se avizinha uma densa neblina que vai lentamente cobrindo os montes:
-- Vai chover! – Ouço minha mãe monologar cutucando os tições no fogão de lenha, avermelhando as brasas com a cabeça coberta por um lenço de chitão combinando com o vestido que cosera espetando os dedos.
Estendido no varal a defumar-se, goteja repetidamente o toucinho, exalando seu cheiro pelo arredor; sobre o fogão fumega o bico do bule já descascado pelo uso: café forte. Meu pai saíra de casa na véspera, embrenhara-se na mata com uma espingarda tira-colo, acompanhado do Duque, seu companheiro de caçada; e ainda não estava em casa nessa manhã.
-Vai lavar essa cara, menino! – Gritou minha mãe a barrear o fogão. Ela acordava bem cedo todos os dias. Mas hoje a rotina havia se quebrado: a primeira tarefa a fazer foi ir ao barreiro da nascente, onde apanhávamos água. Com uma bacia de alumínio remendada com madeira no fundo, apanhava o barro branco e o trazia para reformar o fogão. Vinha de mãos abanando enquanto assoviava pelo caminho, uma rodilha de trapo garantia o equilíbrio da bacia na cabeça.
O fogão fica novo; ela contempla orgulhosa a sua obra. Final de semana sempre aparecia visitas em nossa casa. Também sertanejos da região. Os homens reunidos sob a frondosa paineira, contavam causos enquanto lançavam a fumaça ao vento. Seus cigarros ou cachimbos eram munidos por fumo de corda. Gabavam-se do preparo, cada um engenhoso que o outro.
As mulheres reunidas na cozinha entre mexericos e risos contidos, para não chegar a paineira; ocupavam-se dos afazeres. Socavam arroz no pilão, descascavam milhos verdes enquanto as meninas fabricavam bonecas com o cabelo das espigas. Minha missão juntamente com os outros garotos era a captura do frango para o almoço. Com mais ou menos sacrifício; sempre conseguíamos agarrar um bom exemplar, que era exibido entes do abate.
Na maioria das vezes voltávamos com sangue a escorrer pelas canelas e os pés flechados de espinho. Os mais resistentes, que relutavam em não se entregar; pedíamos auxilio ao Duque com um “pega!”.
O Duque apanhava-o de modo que não o machucava: deitava seu corpo sobre o frango e aguardava que chegássemos para finalizar a tarefa. Depois de destroncado, o frango era pendurado de cabeça para baixo. O pescoço ia inchando, inchando, enquanto o bicho debatia as asas. Não demorava e o cheiro recendia agradavelmente nos arredores:
--Menino besta! Onde já se viu, gostar de pescoço. Só tem osso. Indignava-se minha mãe, ante meu gosto peculiar. Logo depois do fogão barreado, ela assanhava mais ainda as brasas. Assim o barro fresco secava mais rápido.
Mas, esse final de semana tinha ares de ser diferente. Assim como os cavalos, os bezerros pareciam em polvorosa. Apostavam longas disparadas; iam e vinham, incansáveis pulando e escoiceando o vento, observados pelas suas mães, que lançavam no ar um mugido triste.
Com os olhos pregados no horizonte, foi ali que finquei o marco de meus seis anos, principiando a gerar pensamentos, tentando desvendar o sentido oculto das coisas. Fiquei ali, observando o infinito como se nunca antes o tivesse visto; displicentemente enfiando o dedo indicador no rasgo da camisa, enquanto o dedo grande do pé escavacava o buraco na terra úmida.
Hoje sei, havia despertado em mim, naquele dia de tempo revolto, o demônio da curiosidade, ceifando impiedosamente a minha ingenuidade infantil; criando o primeiro vinco em meu semblante.
-- Vai lavar essa cara, já falei! – Apesar do grito, não tinha entonação de zanga.
Cocei a cabeça, caminhando em direção a bica de água. Não sem antes apanhar um bocado de cinzas na mão em concha para arear os dentes. Já de volta pela trilha que me havia levado para lavar o rosto, vejo minha irmã em tamanha algazarra com as galinhas. Pegara uma espiga de milho e enquanto tentava debulha-la, as aves pulavam e se esvoaçavam ao seu redor quase a derrubá-la sentada.
Vez por outra ela iniciava carreira sendo perseguida pelos bichos enquanto ia deixando para traz os grãos de milho que eram logo devorados. Uma algazarra e um farfalhar de asas ensurdecedor.
– Apanhei um frangote abandonado, perdido no capim que certamente se dispersara da família. Olhei o tempo; e o trouxe de volta para junto da mãe dele. Como agradecimento escorraçou comigo:
– Viada! – Resmunguei rumando ao chiqueiro. Passando pelo paiol, enchi o balaio com milho e alimentei os porcos. Que igualmente aos cavalos e as vacas, aparentavam impaciência. Levantei as vistas após alimentá-los e observei que o tempo tomara outro aspecto: o sol que aparecera inibido havia se debandado.
O vento rugiu mais forte retorcendo os arvoredos, fazendo-os dançar em rodopios desatinados. Minha irmã, que fora perseguida por uma pata-choca, choramingava com o rosto todo borrado, torcendo as mãozinhas. Acredito ter ensaiado um esboço de riso diante da situação.
Pelas frinchas da parede, vi minha mãe que varria o chão batido com uma vassoura de guanxuma. Vez por outra espargia água para baixar a poeira. Cantarolava alguma música que, a julgar pelos movimentos dos quadris, insinuava um ritmo forte de tambores. Logo interrompido pelo grasnado da ema, isso me mudou a direção dos sentidos; vinha de longe, um lamento de dor. Minha mãe dizia que era mau agouro e se benzia. Os grilos que estrilavam exaltados há pouco, calaram-se. Em meio esse intenso fluxo de sentimentos, ouvi um espocar seco, ensurdecedor, que ecoou largamente pela mata como um trem desgovernado – descendo vales e subindo serras, ensurdecendo meus sentidos.
Meu coração bateu com fúria, estimulando desespero pelas veias, estremecendo todo o corpo. Nada se via além do terreiro; a tempestade estrondou e caiu forte. Sentado lado-a-lado minha irmã e eu observávamos através da porta de varas, as poças que se formavam no terreiro.
O vento invadindo o rancho, trazendo consigo uma neblina fina que chiava nas brasas do fogão,e, escorria os filetes de barro branco. Minha mãe no quarto rezava à Santa Bárbara com minha irmã no colo, esta, chupava o polegar com olhinhos de transe.
Num rompante, assomou-se à porta aquele homenzarrão de pés descalços e a roupa puída encharcada. Na cabeça o chapéu de massa surrado escorria água da chuva. Descansou a espingarda de boca para baixo perto do fogão, deixando escorregar para o chão, o porco do mato que trazia atravessado sobre o ombro direito. O bicho ainda pingava sangue pelo focinho e exalava um cheiro forte. Tinha um brilho nos olhos e um sorriso repuxando o canto da boca. Acenou-me meneando a cabeça. Permaneci ali parado, hipnotizado, observando o sangue que ia se espalhando lentamente nas águas da chuva, subindo pelos arvoredos tingindo as folhas de rubro, untando a taipa e subindo até o sapé. De lá, num salto fantástico envermelheceu todo o céu da minha infância.
José Mattos