No meio da alegria
“Vivo na tristeza desta vida miserável, mas nasci no meio da alegria.”
O café ficou esquecido na mesa. A costura esfriou na máquina. O dedo parou no ar, lembrando a história tantas vezes repetida.
“Nasci num Baile da Caveira, no Encantado. Caveira no Encantado tem tudo a ver, não é?”
A mesma gasta piada. O mesmo sorriso esperado.
“ Minha mãe estava grávida de oito meses, mas era uma morena bonita demais! Mesmo com toda a barriga, colocava uma mini-saia e ainda era capaz de desbancar muita magrela daquela época. E o Baile do Caveira era ideal para esconder gravidez. Tinha fantasia de bruxa, duende, tudo com aquele batão que cobria parcialmente uma sainha mais curta. Minha mãe tinha umas pernas lindas, você quer ver?”
O retrato aparece entre os moldes no sofá puído.
Lábios grossos, sorriso desatado e pernas fortes de cabocla.
“Ela foi Miss Taquara, representou o Taquara Social Clube no concurso de Miss Pernão.”
Será que existiu mesmo esse concurso? Ela me olha séria, esperando a exclamação admirativa:
“Realmente... Muito bonita!...”
“Pois é. Conheceu meu pai numa dança no Centro. Naquele tempo havia umas gafieiras por ali, bem legais. Ele tocava pandeiro no conjunto, acho que era bonito, mas sua participação no meu nascimento se limitou a uma agarração com mamãe atrás de uns tapumes e uma sessão no Motel Gota Dourada, onde ela perdeu o cabaço e a cabeça...”
Riu, outra vez, da própria piada, mostrando os dentes parcialmente estragados.
“...depois ele sumiu nesse mundão de meu Deus e ela ficou sozinha com a sua barriga, sua raiva e sua vergonha. Que minha mãe era moça direita até conhecer meu pai e se perder na vida. Meu avô ajudou a me criar, era um bom marceneiro, muito considerado ( este armário foi ele quem fez ). E mamãe sempre trabalhou, coragem nunca faltou na nossa família. Mas eu estava falando do meu nascimento...”
“.... pois é, minha mãe foi vestida de bruxa, com uma saia pelo joelho, uma bata cobrindo a barriga, aquele chapéu pontudo, muita maquiagem e umas unhas enormes emprestadas pela Branquela, outra manicura amiga dela. Minha mãe foi manicura uma época, já contei pra você? Fazia uma meia-lua como ninguém!... Isso foi antes de cair na vida...Bom, mas lá foi ela de salto sete e meio e eu dentro da barriga naquele calor e naquele barulho infernal, em plena terça-feira de Carnaval. E quando digo que nasci no meio da alegria, é no meio da alegria mesmo, porque quando resolvi aparecer, minha mãe se enganchara com um fuzileiro naval, segundo ela me disse depois, um pedaço de mau caminho, de olhos verdes feito água e o susto que ele tomou não deve ter sido brincadeira!... estavam no maior amasso ao som de mamãe eu quero... mamãe eu quero ... veja você!”
Ela ria, segurando os seios, apertados no vestido justo.
“Mamãe nunca mais pôde escutar essa música. Quando pintaram meus sinais, não deu nem tempo de arrumar uma curiosa pra ajudar. Ela gritou, o pessoal fez aquela clareira, um diabo gente boa tirou sua capa e forrou o chão pra me receber. Nasci ali mesmo. No meio do baile, sobre aquela capa de cetim vermelho. O cordão foi cortado com a faca de uma das mesas, não sei como não morri de infecção... mas pobre não tem frescura. Cresci forte como um touro e se hoje estou comida pela doença foi por causa da bebida, do maldito cigarro e da orgia, minha companheira esses anos todos. Vivi na rua muito tempo... você não acredita me vendo hoje, não é?”
Ela mostra com orgulho o quartinho modesto, a máquina velha, o sofá florido, o Sagrado Coração iluminado e enfeitado com flores de plástico baratas.
“...Consegui me reerguer, arrumei umas freguesas de costura... modéstia à parte, sempre fui boa no trabalho... e estou aqui...”
Cortou a linha com os dentes e enfiou a agulha.
“... Mas se não fosse a doença... eu continuava naquela vida que para ela ainda tenho gosto, sim senhora... é meu destino, o que se há de fazer? Nasci em pleno baile de no Carnaval, numa capa vermelha do coisa-ruim, como é que eu podia resistir?... Concorda?”
Concordei.
Maria Helena Bandeira