O deus anoitecido de Mukavel
Ondulava Lusa, com seus pés de tamborzinho ritmado, por entre a noite cantada da selva. A aldeia de colmo silencioso pendurada no estalar da fogueira de lua e mar. Ao fundo, os gambozinos e outros dissabores sonhados que tais.
Emolduradas no azul nocturno, as derradeiras ossadas do que se contava terem sido os botes de muita viúva trazida ao mundo. Dezenas de carcaças de madeira que o tempo soprou cascas de noz anoitecidas num desígnio quase arqueológico. E nessa peste de cheiro salgado por certo a pele se engalinhava pela quasi-presença de um novo olhar.
Lusa era ânsia soluçante. Atentara no esplendor da tarde passada: Mukavel chegara de bicicletar. Nesse instante, de corpo entornado em suor, pousou aquele deus embrulhado em lona michuruca. Logo o assento de erva selvática e terra batida se viu convertido em templo ou ilha de admiração.
Mukavel, tornado Messias do embrulho, não desvendou logo os olhos da curiosidade. E pregou do alto do seu corpo de colibri esfomeado.
— Dentro daquele saco trago novos olhos para toda a gente…
A aldeia tresandava a murmúrio. Mukavel, inesperado propagandista, retorquiu.
— Quem gostar dos novos olhos, compra! Quem não gostar, cega!
Assim animado, converteu palhota em escritório de peregrinação. Para experimentar os novos olhos Mukavel cobrava. Podia ser em moeda, galinha ou favor a prestar. Estratégia para valorizar o produto e agigantar a expectativa.
À porta da palhota rentavelmente milagrosa engrossaram as gentes. Os carreiros transbordaram e os estômagos não almoçaram para ver com outros olhos.
Lusa desconfiava. Mukavel impusera o total sigilo – se é que pode existir o parcial – aos peregrinos pagadores. Forma esperta de não afastar a possível clientela. E assim Lusa – não pagadora – via proibir-se esse novo mundo do olhar.
Ao fim de tardias horas de consulta e de crédito, Mukavel decretou perante o fascínio generalizado.
— Logo à noite, ESPECIALMENTE – fez questão de erguer o braço e a voz – há consulta para todos… GRATUITAMENTE… – empenho do mesmo jeito empolgado de quem já folgou o bolso – Quando o sol terminar, consulta para a gente…
A aldeia desunhou-se pela refeição antecipada. De modo algum, a falta à comunhão sob as estrelas e a noite cantada do mato. Assim se profetizou, assim se cumpriu.
Findo o sol, Mukavel descobriu para todos o novo deus. A noite de gente arqueou-se. A partir daí, proibiu-se a palavra e decretou-se o ronronar único da fogueira ante a sombra de Mukavel.
A aldeia fez-se silêncio. O deus fez-se televisão.
Paulo Nuno Vicente