Sócrates

— Como está você?

— Bem, — respondi espantado! — , à pessoa que apareceu, de repente, saída não sei de onde, lembrando um personagem nordestino do filme Central do Brasil. De onde surgiu você?

— Vim do Céu?

— Do Céu? Quem é bocê?

— Sou Sócrates, o filósofo.

— Ué!!! Você?... Mas você tá no Céu?!

Causa causarum, salva-me, clamei eu no minuto final de minha existência, só que falei em grego. Nem precisava. O " Causa Causaram " existe mesmo e me salvou. Vivo no Céu.

— Fico contente com isso: você é uma das pessoas que esperava encontrar por lá, mesmo. Por quê apareceu justamente a mim?, uma vez que existe gente muito mais importante, erudita, e mais famosa que eu?

— Nunca fui adepto desse negócio de fama. Quanto à erudição, cada pessoa faz umas colocações, outras fazem outras; a gente acolhe o que achar mais verossímil, mais útil, mais belo... Fica sossegado, tenho meus motivos para aparecer a Você. E continuou:

— O comportamento das pessoas e a situação do mundo não estão muito diferentes das contradições de meu tempo, só que pior, em muito maior escala. Os sofistas continuam na "crista da onda", principalmente através da TV, etc. Os governos são ineficazes e muitas vezes também corruptos. O tal sistema representativo só faz e só pode fazer chegar ao governo representantes daquilo que a massa é. Se a massa não é politizada... A desinformação e a mentira são generalizadas.

— Insiste na aristocracia?

— Sim: aristocracia, governo dos mais capazes. Reflita: na busca de terapia, mais vale a opinião de um médico que o voto de dez pessoas quaisquer. O levar vantagem e o esforço para ganhar dinheiro continuam motivando a maioria das pessoas; uns por causa da sobrevivência, muitos, porém, porque sua sede de poder e sua ambição são sem limites.

— Bem Sócrates, andei lendo e apreciando o que você ensinou, diferentemente dos filósofos que acreditavam que deviam procurar uma explicação para o mundo natural, que a busca e os pensamentos deveriam voltar-se para assuntos mais fundamentais: o homem e o humano, certo? A base de seus ensinamentos foi a crença na compreensão dos conceitos de justiça, amor, virtude e conhecimento de si, o famoso " Gnoti se autom ", inscrito depois no pórtico do templo de Delfos. Você, Sócrates também acreditava que todo vício é produto da ignorância e que a a virtude é conhecimento, pois aqueles que conhecem o bem, agem de maneira justa.

— Isso. Por aí se vai.

— Pergunto, todavia: o conhecimento hoje não é uma grandiosidade?

— Sim, mas conhecimento amplo de coisas sem aplicação prática; falta um elenco de conhecimentos mínimos, básicos, para viver e usufruir uma vida de qualidade. Reitero que minhas propostas eram: que o homem é a sua alma — psyché, por quanto é a sua alma que o distingue de qualquer outra coisa, dando-lhe, em virtude de sua história, uma personalidade única. E por psychése entende nossa sede racional, inteligente e eticamente operante, ou ainda, a consciência e a personalidade intelectual e moral.

— De fato, prezado Sócrates, suas colocações exerceram uma influência profunda em toda a tradição européia posterior, até hoje, até demais, porquanto o humano não é apenas psique e corpo, mas; ESPÍRITO, PSIQUE E CORPO.

— Concordo, não me considerava assim, mas me sentia assim, — dá para entender? — a essência mais essencial do humano, se podemos dizer assim, é ser um espírito fazendo uma experiência humana e não o contrário, ou seja: não é um animal racional fazendo uma experiência espiritual. Acreditei e declarei aberta e vivamente ter recebido essa tarefa de Deus. Queira ler Apologia sobre mim, de autoria de meu dileto Platão: "(...) é a ordem de Deus. E estou persuadido de que não há para vós maior bem na cidade que esta minha obediência a Deus. Na verdade, não é outra coisa o que faço nestas minhas andanças a não ser persuadir a vós, jovens e velhos, de que não deveis cuidar só do corpo, nem exclusivamente das riquezas, e nem de qualquer outra coisa antes e mais fortemente que da alma, de modo que ela se aperfeiçoe sempre, pois não é do acúmulo de riquezas que nasce a virtude, mas do aperfeiçoamento da alma é que nascem as riquezas e tudo o que mais importa ao homem e ao Estado." Você concorda ter isso um fundamento espiritual?

— Concordo sim, respondi, mas teimei, ainda em perguntar: Você acreditava na imortalidade da alma e a imortalidade da alma foi o assunto constante de seus dias finais de vida, mas por que pediu a seu amigo Críton que sacrificasse em oferenda um galo ao deus Esculápio, ao qual se atribuía a cura da fadiga e dos males da vida?

— Se existisse tal deus, ao qual viria a ser oferecida a oferenda costumeira, mas se ele não me livrou da cicuta, nem da morte, é sinal evidente de que não existe, não é verdade?

Tal foi o resumo de minhas conversas com Sócrates, que se despediu a seguir, alegando ter sido convidado por São Paulo para ver na TV CELESTE o embate do Tricolor contra o Corinthians. Que figura!

Puxa! Sempre acontece comigo: deixei de esclarecer algo que sempre me encucou: se Sócrates acreditava mesmo em que aqueles que conhecem o bem, agem de maneira justa?

Fiquei com raiva de mim mesmo, por não ter aproveitado a ocasião tão especial.

De repente: puft!

— Eis-me aqui de novo! Voltei!

— Que bom: eu me esqueci de perguntar algo de muito interesse para mim.

— Pode perguntar. De que se trata?

— O seguinte, Sócrates, você acredita mesmo que aqueles que conhecem o bem agem de maneira justa?

— Acredito.

— Mas é muito fácil: é só ensinar o bem para todos e melhorando todos e cada um o mundo ficará melhor.

— Só ensinar?! Não é fácil ensinar algo a alguém, algo de fundamental para a vida, coisas assim como conceito do amor, o sentido da vida, o exercício da vontade, ao invés da satisfação de desejos... Quando abordamos os temas mais importantes para a vida humana a mente das pessoas voa, divaga. As pessoas temem o compromisso com o amor, com a verdade, com a liberdade, com a justiça... Os conceitos mais importantes para a vida, todavia, já estão dentro das pessoas.Não se trata tanto de ensinar, mas de fazer nascer tais conceitos: este o conceito de educar: trazer de dentro.

— Ah! Sim... Uma espécie de parto.

— Exatamente. Percebi essa realidade através do ministério de minha mãe, pois ela era parteira.Os conceitos mais importantes para a existência já estão todos dentro das pessoas, tal como a criança está dentro da mãe. É preciso fazer os pensamentos pulsarem para sair, assim como a criança precisa das contrações da mãe para nascer. As contrações são os movimentos de expulsão dos músculos que circundam o útero. Começam a pulsar a um intervalo de cinco minutos e depois vão ficando mais rápidos, forçando os bebês a nascer. Os bebês também fazem força para nascer. Chega a um ponto que o parto acontece, sem que se possa mais impedir ou retardar.

— Ahnnn...

— Os pensamentos também pulsam.Quando alguém diz vou ler alguns pensamentos, na realidade não vai ler pensamentos, mas citações de pensadores de valor. O pensamento é algo vivo, pulsante. Quando disse que aqueles que conhecem o bem, agem de maneira justa, pensava num conhecimento experimental, repetido, digerido, assimilado. Pensar vem de um verbo latino, pensare que quer dizer pesar: pesar, analisar, comparar. Trata-se de reflexão. É preciso haver disciplina e força de vontade.

— Mas não é exigir muito o pretender que as pessoas assimilem muitos princípios?

— Não precisa assimilar muitos. Apenas um. Um por vez. O aprendizado de algum novo princípio ou assumir um novo valor exige o abandono não apenas de um princípio ou valor anterior, mas da própria personalidade. É algo semelhante a uma fileira de dominó.Você derruba um da ponta e todos os outros caem. Depois é preciso arrumar de novo. As pessoas, além do risco de assumir novos valores e princípios, relutam em abandonar velhas idéias e conceitos, companheiros mais ou menos antigos.

— Bem, Sócrates, então...

— Não se apavore. É isso mesmo: aqueles que conhecem o bem agem de maneira justa.

— Impressiona-me que a humanidade ainda não descobriu ou não se convenceu disso há 2.500 anos.

— Agora vão descobrir.Questão de sobrevivência.

Acabou de falar e desapareceu.

Diógenes Pereira de Araújo

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