Um beijo
Minha história é, sem dúvida, singular.
Conheci meu atual marido em Goiás, em uma das minhas inúmeras viagens. Na verdade, em uma emergência — uma pane em uma estrada de terra quase intransitável durante uma chuvarada ao anoitecer.
Quando ele passou por mim, a cavalo, eu não sabia se suspirava de alívio ou se entrava em pânico. O medo primitivo pelo macho aflorou à pele, porém, afinal, eu sou uma mulher moderna, versada em artes marciais e que já enfrentara as ruas de São Paulo, Rio, New York e Hong Kong — e sobrevivera .
Foi paixão à primeira vista.
Que gentileza! Que respeito! Quanta amabilidade! Aquele homem fez com que eu me sentisse, ali no meio do nada, tão importante quanto uma grande dama. Graças a ele dormi com segurança, de estômago cheio e de alma leve, depois de uma boa prosa ao pé do fogo. Na manhã seguinte ele acompanhou-me ao mecânico e não me largou durante toda a semana, fazendo-se meu guia turístico exclusivo.
Eu estava encantada com a pessoa linda que ele revelava ser e completamente apaixonada quando ele me pediu em casamento, à moda antiga, com todo o respeito. Eu já era viúva nessa ocasião, há muito deixara a juventude para trás e, digam-me, que mulher, em qualquer idade que seja, resiste a um homem que a ama tanto a ponto de querer casar?
O primeiro choque foi descobrir que ele era um completo analfabeto. Se eu o soubesse ao primeiro olhar jamais teria existido o segundo. Eu, com formação universitária !
Descobri que existe em meu país, bem próximo a Brasília, a capital, uma comunidade sem energia elétrica e sem água encanada.
Ali nascera e vivera Onofre, sem rádio, sem televisão, sem videocassete, sem computador e sem água quente, criado em lar alegre e amoroso com pão caseiro feito em forno a lenha e roupa lavada na beira do rio, trabalhando a terra sem adubos químicos em perfeita harmonia com a natureza, o que inclui também uma perfeita harmonia com as cobras e os mosquitos.
Eu fora conhecer a família dele, uma gente alegre que conta “causos” e canta à noite ao redor da fogueira, vivendo tão bem que a gente até fica pensando se quem está certo, afinal, não serão eles.
— Meu bem, o que é aquilo preto lá no teto, que parece grande demais parra ser barata? Eu olho para aquilo e não consigo dormir.
— Nada, não, meu bem, é só um morceguinho.
— Ai !
— Você é mesmo engraçada, tão grande e com medo de tudo.
Como eu me declarasse absolutamente incapaz de viver à beira do rio, ele concordou em instalar-se na cidade, aonde já estamos, juntos e felizes, há nove anos.
Claro que houve desencontros, e monumentais, em nossa vida em comum, em nossa união tão desigual. Com bom humor superamos todos os obstáculos.
Houve um incidente, contudo, quase letal. Estávamos em frente à TV, quando passou um documentário sobre a chegada do homem na lua e meu marido desatou a rir:
— Ah, que boa piada! Como se um cristão pudesse sair desse mundinho aonde Deus o colocou!
Perplexa, comecei a explicar-lhe tudo o que sei sobre a corrida espacial, toda a importância da ciência da NASA, dos homens que dedicam toda a sua vida a estudar os céus... e a frustração de ver o matuto ignorante e incrédulo a olhar-me penalizado pela minha ingenuidade. Meus sentimentos foram variando da vergonha à raiva e culminaram em arrogante desprezo, quando ele respondeu :
— Benzinho, você repete todo este discurso quando estes tais de astronautas chegarem ao sol. Ah! Ah! Ah!
Foi demais! Levantei-me disposta a acabar com tudo, a jogar o casamento no lixo, seria impossível uma mulher civilizada conviver com um troglodita ignorante.
Ele nem desconfiou de minhas intenções. Em um gesto puro, espontâneo e simples, seus braços amorosos envolveram-me e ele depositou em meus lábios um beijo tão doce que eu lá fiquei de pernas bambas, completamente rendida.
E concluí que o coração de um homem, do meu homem, vale mais que um mero detalhe na história da humanidade — a ida do homem à lua.
Sonia Rodrigues