Os labirintos

A  última coisa que lembro antes de acordar nesse quarto de hospital, é que estava lendo umas poesias de Ricardo Reis. Lembro-me exatamente da última:

  "Sê o dono de ti
sem fechares os olhos.

  Na dura mão aperta
Com um tacto apertado
O mundo exterior
Contra a palma sentindo
Outra coisa que a palma"

Estava em meu quarto, sentindo-me muito bem, e como estivesse mais voltada para poemas, selecionei o livro de Ricardo, que há algum tempo não lia. Sim, confesso que foi como se tivesse tomado uma taça a mais de vinho, e, certamente, devo ter adormecido. Digo que percorri estranhos labirintos. Em cada um havia uma espécie de quadro descritivo afixado à entrada, mas  não conseguia decifrar. Eram códigos.
No primeiro labirinto, me vi muito jovem, cerca de  quinze anos, namorando aquele que, nessa fase, na vida real fora  apaixonado por mim, e eu  o vivia rejeitando. No referido labirinto, eu, feliz, preparava meu enxoval para aos quinze anos casar-me com ele, vestida de noiva, na igreja,  e aos dezoito, ter um casal de gêmeos, como minha avó. Que bela visão!
No segundo labirinto, eu já adulta, era uma jornalista e trabalhava num jornal de grande circulação, como correspondente  na Europa. Parecia realizada profissionalmente. Estava me deliciando com a visão, quando fui transportada ao Egito, e com papai, percorria as pirâmides e explicava  a ele, com detalhes  tudo que havia  aprendido na Ordem Rosa Cruz sobre os faraós. Enfatizava o período de Akenaton. Quantas surpresas os labirintos proporcionavam!
Subitamente, sou arrastada para outro labirinto, e me vejo solteira, mas com uma  filha de cinco anos, chamada Yasmin, aliás, muito linda e  parecida comigo, modéstia à parte. Como eu estava feliz ajeitando os cachos de seus cabelos! 
Não permaneci mais que dois minutos  e fui empurrada para outro labirinto, onde estava prestes a ser avó dos filhos dos gêmeos que tive aos dezoito anos com o namorado do primeiro labirinto, um oficial da marinha.
Foi brusco o movimento que me levou ao mais estranho dos labirintos. Um ser etéreo me conduziu a uma espécie de tela onde eu veria parte de minhas existências e talvez compreendesse os intrincados processos da vida atual. Vi-me então em remotas eras... Na India Védica, no antigo Egito, vagando pelo deserto com  o povo hebreu, consultando a Pitonisa do EnDor,  queimada pela Santa Inquisição por ter sido  julgada bruxa, e muito harmonizada  na forma de um  monge budista.   Vi - Sócrates, Buda, Jesus, que deixam suas mensagens, como os grandes revolucionários que nunca pegaram em armas. 
Novamente sou puxada bruscamente. O ser etéreo diz que  já vi o suficiente e que nem tudo poderei narrar. Faço uma promessa que cumpro nesse momento, omitindo várias passagens.  Tento abraçá-lo, esquecendo que não é tangível...    Na verdade,  percorri mais de vinte labirintos, não me recordo em detalhes de todos eles, mas sinto que me foram mostradas todas as opções de vida que tive.   Como saber se as escolhas foram acertadas? Talvez aí esteja o problema. Eu não queria acordar, analisar, pois nada poderia ser modificado. Simplesmente usara  o  livre-arbítrio e nada havia a ser lamentado.
Quando completei vinte e quatro horas  adormecida, houve pânico e me conduziram a um hospital de  inteira confiança, soube posteriormente desse detalhe.
Na verdade, foram quarenta e oito horas de sono profundo, sem que nada fosse detectado de anormal. Dizem  apenas que eu sorria muito!
Ao acordar, estava calma,  apenas surpresa por me encontrar naquele ambiente. Aos poucos,  fui reconhecendo as pessoas.  Muito bem orientada no tempo e no espaço.
De todas as visões, uma emocionou-me de forma indelével: Yasmin.  Nunca a havia visto assim. Imaginava, mas, ter visto foi totalmente diferente.  Trouxe o cheirinho que estava naqueles cachos dourados, e consegui gravar em minh'alma o som doce  de seus risinhos...
Serviram-me uma sopa, seguida por gelatina de morango, e a alta foi dada. Então , chorei... Não lastimei as escolhas, mas senti muita saudade da filha que não veio!

Belvedere

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