Cigarette blues 


Cry me a river... I cried a river over you”

Nem lembro mais o porque do nome da banda. Acho que foi a sonoridade. Ao nosso inglês precário parecia bonito - cigarros e azuis, tristezas e blues, como os que cantávamos imitando Billie.

Então ficou Cigarettes Blues, mesmo depois que aprendemos alguma coisa das letras que cantávamos pelos bares da vida. Nas estradas perdemos a ilusão e o blues. Ficaram os cigarros, as tosses noturnas, pastilhas meladas nos bolsos e a guitarra desconjuntada do Billie.

Billie se chamava Edvaldo, morava em Cachambi e tinha um dente de ouro lateral que aparecia quando cantava. O cabelo continuou comprido, sobrevivendo à moda e ao desencanto.

Ninguém se interessava pela música que amávamos, os marginais dos bares sórdidos queriam lamentos caipiras e mais recentemente, sambas abolerados, ou pior sambas rurais, um pastiche absurdo de ritmos, transformados em sopa cáustica que descia pelos nosso ouvidos como lâmina. Fazer o que? beber e fumar que era a sobra após a divisão dos ganhos.

Mimi desistiu primeiro. Arrumou um fazendeiro rico, na versão sonhadora dela, um sitiante remediado segundo as más línguas das banguelas.

Ficamos os três sobreviventes: Marina, Billie e eu.

Marina era bonita, podia ter escolhido vida melhor, mas foi atrás dos Cigarettes bues e das luzes da ribalta. Ficou arrastando perdidas ilusões pelas sórdidos palcos das cidadezinhas minúsculas, em periferias empoeiradas. Seu cabelo brilhante permaneceu com a ajuda da química, mas uma auréola grisalha justificava os traços gastos, as olheiras escuras e a voz rouca.

Tudo isto eu podia suportar. Suportei sempre, mesmo quando o sonho virou pesadelo, pior, virou tédio, vazio, vozes na madrugada, vaias, conversas paralelas enquanto cantávamos, só de pirraça, nossos antigos blues na guitarra desafinada.

Mas quando o cara começou a nos descompor, quando levantou da mesa com sua garrafa de uísque, sua arrogância de freguês rico, quando nos chamou Cigamerdas blues, eu não agüentei.

Lembro de tudo como num filme – eu andando em câmera lenta até a nossa mesa, abrindo a bolsa, pegando o velho revólver companheiro da estrada.. e atirando... atirando, atirando e atirando... uma bala para a dor... para a humilhação, pelos sonhos desfeitos, outra ainda pelas roupas rasgadas, os cabelos compridos, o dente de ouro, os cigarettes das madrugadas, os blues esfarrapados.. até descarregar o tambor, até me esvair em lágrimas quentes que carregaram embora a visão do sangue, da noite, da vida.

Não atirei no cara, entende?.. não, não foi nele. Foi em nós.

Nos cigarette blues.

Maria Helena Bandeira

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