RENASCENÇA
O silêncio de Chico não incomodava Tonha. Acostumara-se e compreendia, a velha companheira, o significado daquela viagem para seu homem. Mesmo sem que palavra alguma ao longo dos anos antevisse aquele dia, Tonha sentia na melancolia e angústia do marido pelo sonho daquele retorno. As rugas do rosto traçadas pela incansável dedicação ao trabalho etiquetavam o custo daquela realização embrulhada no delgado e ainda saudável corpo.
O trem trazia de rastro a vida dele, quase no mesmo vagar dos quarenta e cinco anos que a partida atravessara. Na paisagem da janela os dissabores da infância, as descobertas da juventude e as certezas da maturidade transitavam antagonicamente decorrendo a viagem num retrospecto. Os abismos à margem o remetiam aos perigos enfrentados na solidão do abandono do destino. Os contornos nas montanhas mineiras abandonavam os desvios outrora negados à vida do pobre. Chico perdia a distância em seu olhar a cada légua entorpecida no passado.
Reconheceu a intacta estação de Marinésia.
De caso pensado, Tonha o acompanhou atrasada nos passos. Espiava os passos de Chico a levantar com firmeza a poeira solta da estrada que subia a colina. Travestido da consciência do menino matreiro, reconhecia as grandes árvores, os longínquos grotões, as ruínas de edículas abandonadas e currais. Até parar defronte um conjunto de quase dúzia de casas que circundavam uma velha capela sobre uma escadaria de toras rachadas.
— Este lugar parou no ontem... Segredou um sentimento a Tonha.
— Imaginava diferente?
— É melhor que assim esteja. Começo a vida de onde a deixei.
Tonha lhe apertou a úmida mão esposando seu propósito. Caminharam até a derradeira casinha amarelada pela poeira. Bateram palmas na janela. Uma anciã arrastou chinelas se apoiando nas paredes do corredor.
— Quem chama?
— Chico de Honorinho, Sá Alice!
Tonha percebia uma inédita ternura na voz de Chico.
— Valei-me minha Santa!
Uma velha negra, redonda e quase cega, abriu trêmula a porta exclamando em sorrisos de boas-vindas:
— Num esperançava que viesse aproar por esta terra nunca mais!
Chico lhe abraçou e beijou-lhe a testa. Segurou seus ombros como se firmando seu corpo para ouvir-lhe.
— Corda de umbigo que terra põe, tempo nenhum, nem tesoura cortam de vez.
Atravessaram a tarde em lacrimosas lembranças repassando a vida de ambos entre goles de grosso e cheiroso café. Atenta, Tonha testemunhava o carinho de filho que seu homem revelava por aquela senhora que o acolhera na morte dos pais e dele despedira em despacho na estação rumo a Belo Horizonte. Guardara as terras da chácara com a autoridade da parteira e benzedeira anciã da comunidade da montanha.
Silenciosa, a tarde já caía no dourado crepúsculo do grotão mineiro. O casal desceu a ladeira escondida pela capela. Chico parou na porteira entreaberta. Um tremor lhe enfraquecia as pernas. Tonha tomou-lhe à frente, como a antever a emoção do marido, empurrou a porteira e segurou-a. Num olhar convidativo chamou os passos de Chico. Ele alisou o cimento vermelho do alpendre, de onde, sentado, testemunhava os planos do velho pai observando a noite. A porta rangeu despertando os espíritos da casa. As brasas do fogão a lenha estalavam. O aroma do café passado no coador de pano e o do fumo dourado do rolo pendurado no corredor misturavam-se com o querosene queimando nas lamparinas. Tonha abriu as janelas que libertaram a escuridão dos anos de clausura.
Chico cessou os passos na porta do primeiro quarto, vazio, fitando na parede a sombra do terço de madeira que guardava a cama de seus pais. Saiu pelos fundos e dirigiu-se à cisterna. Soltou a manivela que cantou feito carro-de-boi até o mergulho do balde. Puxou e fitou por instantes seu rosto no espelho d'água, como a se inserir na realidade do lugar. Molhou seu rosto lavando suas lágrimas. Suspendeu um punhado sobre a cabeça em novo batismo. Caminhou até a amoreira se ajoelhando nas raízes.
Recostada no umbral da porta da cozinha, Tonha observava em soluços. Chico passou as mãos sobre a terra e disse:
— Aqui minha mãe plantou meu umbigo curado. Sob as sombras desta amoreira estão minhas raízes. Retomo daqui o curso da vida que se interrompeu. Aqui refaço o laço de amizade com o tempo que me consumiu, tomando em minhas mãos as rédeas do relógio da vida.
Tonha o ergueu e o abraçou.
— Vamos meu velho. Vamos descansar. Amanhã tomo o trem de volta pra guiar a mudança.
Em seu íntimo ela temia a onda de emoção que vergava aquele corpo sempre ereto a enfrentar as agruras do destino.
Leves e altivos, caminharam em retorno à casa de Sá Alice.
— Podemos colocar uma placa no mourão da porteira! Tonha buscava um sorriso na transtornada face do marido.
— Minha velha! Já pensei num nome para a chácara. Um nome que indicará a todos o que se dará aqui: RENASCENÇA.
Edson Campolina