Os flocos

Preparando o balão para a noite, um dos flocos que avoam, igual às pipas sem dono, cai em mim. E percebo que são todos eles de ar, como as bolinhas de sabão que sobem quando a mãe está ao tanque lavando roupa. Eles até se parecem com as cinzas que saem dos balões que solto junto do pai: se desfazem em minhas mãos.
Clarice amarra um pedaço da linha, que está toda embolada no quintal, a uma pedrinha. Ela quer tentar pegar a pipa que agarrou na árvore quando era hora do almoço. Fez hoje de manhã, depois de passar o dia de ontem todo atrás de bambu. A mãe nem sabe disso. Também se soubesse da Clarice a subir os morros para catar até varetas no chão, nem sei... Sei que de tanto balançar esta mangueira vai fazer as mangas caírem em cima da minha cabeça. É época das frutas, mas parece que ela só vê a pipa e mais nada. No azul do céu, vai cortando as dos outros – meninos. Claro que muitos nem sabem que perdem a pipa por causa de uma menina. Outros fingem não saber.
O balão foi o pai quem me ensinou a fazer. Ele conta que aprendeu com o vovô, o pai dele. Sempre o avô e a avó vêm soltar com a gente em tempo de Festa Junina. A gente, então, faz churrasco e coloca chapéu de palha e dança quadrilha e mais, muito mais. Mas quando dá onze horas, a gente tem que dormir. Não sei por que essa história de os mais novos terem que dormir cedo. — Cedo? — É, vó, onze horas é cedo, nem tô com sono. Quero mais canjica, também.
Era uma quarta-feira quando levei canjica na merendeira, e uma professora de que não gosto muito falou que parecia marmita, de homem que trabalha. Perguntei se ela tinha levado também a dela; e me olhou com raiva, então desci para o recreio: lá no pátio, conheci a amiga de Clarice. Desde aí ela vem com umas idéias meio malucas, principalmente quando está aqui em casa e me chama, na festa, para ser o seu par. Não sei de onde tira:
— Você já viu que na palma da nossa mão tem um M?
— São três linhas na minha, digo.
— Um eme, então.
— Que tem?
— Eme de Maria.
— De Mário, então.
— Também de mãe... menina...
— E o que tem?
— Nada, ué. Eu acho legal.
— Parece uma costura na mão.
— Quero ser Maira. Eu pareço com Maira?
— Maísa. É melhor.
— Mas já é o meu nome, bobo.
— Então deixa assim.
Deixei algumas folhas no varal, de papel reciclado, lá atrás. Nem sei se vão ficar boas. Usei o liquidificador sem a mãe saber. Era pra eu ter aprendido a fazer na escola, mas no dia eu faltei: Clarice me chamou pra ir lá no morro procurar bambu com ela. A gente ficou por lá até cinco horas; comeu a merenda e apareceu bem sujo em casa, o que fez a mãe continuar reclamando que sujo muito o uniforme no colégio. Acho que quer, igual a mim, que chegue logo as férias. Faltam dois meses ainda, mas não vê a hora. Maísa também, agora então que aprendeu a gostar de bolinhas de vidro, de gude.
Outro dia, ela e Clarice estavam inventando uma armadilha – queriam pegar ratos que às vezes apareciam aqui em casa. Pegaram uma caixa de papelão – do rádio novo. Um monte de furos tinha. — Os ratos estiveram por aí, falei, mas ninguém achou graça, ou nem ouviram. Às vezes as meninas ficam avoadas, como pipas e bolinhas de vidro sem saber aonde vão... No sábado, Maísa me disse: — Tem a boca bonita, você... Depois me beijou e falou que era doce – me fez ficar vermelho, da cor da pulseira que ela usava; e riu, parecia que já estava acostumada a fazer isso. Acho que eram aquelas revistas que ela sempre pega escondida da sua irm㠖 mais velha.
Vou lá atrás ver se encontro um pedaço de pano: está faltando a bucha do balão. E Clarice não desiste, em vez de fazer outra pipa...
— Só falta caqui pra gente. — E melancia, mãe... A mãe pegou do papai a mania de plantar. Um pomar, aqui atrás. Mas, são boas as manias dela. Como quando a gente fica em volta da fogueira, conversando e cantando, e ela lê umas palavras bonitas que falam do céu: tudo é precioso lá, brilha igual às estrelas, um brilho cândido que preenche tudo. — E cândido o que é, mãe? — É branco e puro, vem de Deus, como os vinte e quatro tronos que ficam ao redor do trono dele. Neles estão vinte e quatro anciãos com vestes brancas e coroas de ouro, e eles homenageiam e mostram reverência... A mãe diz, e o avô concorda, que os anciãos representam sabedoria, e agradecem o que têm a Deus, lá no céu. — Então ser sabida é ser de Deus, Maísa quis completar... Corri, fui falar com a avó: — Não é Cândido o nome daquele pintor do livro que a senhora trouxe? — É. Cândido Portinari. Ele pintava e escrevia sobre o vento, as nuvens, a infância, e um monte de coisas. Sobre o Brasil.
Clarice gosta de Nuvens da Fantasia, um quadro bonito que diz: “Nossa imaginação esvoaçava como pipas pelo firmamento. Fantasias forjadas, olhando as nuvens brancas, mais brancas que a neve.” Os flocos de neve devem ser parecidos com estes que estão caindo agora de tarde. Só que mais frios.
Nesse dia, a avó, vigiando a canjica no fogo, leu alto Poesia Fugitiva: “Poesia é um passarinho muito raro. Passa depressa. A gente vai querer segurar, ele voa e vai-se embora.” É o quadro preferido dela; me faz lembrar do balão grande que a gente solta quando dá onze horas: fico olhando, esperando que Deus fique com ele lá no céu – guarde o meu presente como guarda as estrelas... Aí me vem e penso nos outros avós, os pais da mamãe, que vão aparecer fim de ano. Moram longe, a gente se vê uma vez só, todo Natal, quando a gente celebra Jesus na gente e agradece, por isso, em volta da mesa. O avô faz a oração e a avó se encarrega dos presentes: ela é festeira, como diz vovô... Deram pra gente, ano passado, duas bicicletas. Eu ainda não sei como chegaram até aqui – as bicicletas. Engraçada foi a Clarice quando começou a andar e cair. Se bem que eu também caí algumas vezes – poucas. Mas a irmã levou mais tombo. E, costumeira como é – a avó que fala assim –, Maísa pega a minha bici c! leta – sem pedir.
O sol secou as folhas de papel reciclado, aqui atrás. Acho que vou escrever, gravar o recado em uma delas: Mãe, não esquece da melancia, e colocar no canteiro ou no chapéu bonito que ela usa – a mãe parece às vezes uma menina, como agora, de vestido leve e chapéu claro, regando as plantas, mexendo na terra...
Volto do pomar, para acabar de preparar o balão, e vejo Clarice, pulando, tirar a pipa da árvore. E diz pra eu sair de cima da linha que tenta desembolar, esticando os braços: — Não pisa nela, Caio! — Dona do quintal...
Continuam caindo os flocos. — Flocos? — É, mãe, olha... Custa a enxergar, mas pega um pauzinho de madeira e escreve na terra do canteiro: Filandras.

AFilipe Bernardo

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