O MENINO DE SUA MÃE
Chegou a casa com maus modos, para jantar.
Tirou do bolso um papel branco e atirou-o para a prateleira da estante.
Olhei-o interrogativamente. Desviou os olhos de mim e, saindo da sala, disse:
– Estás grávida, estás!
O meu coração disparou, batendo muito depressa.
Angústia. Medo. Perante a ameaça e a raiva daquela frase dita entre dentes.
Ele saíra da sala sem mais uma palavra.
Eu fiquei presa ao sofá, em frente do aparelho oco da TV.
Os maus modos dele diziam:
– Só faltava estares grávida!
Como se fora algo que eu fizera sozinha!
Comeu e saiu.
– Vou trabalhar! – Era por essa altura a frase com que se despedia quando ia ter com a tal “menina”...
Tratei da minha filha, com três anos e meio, deitei-a na sua caminha branca de grades.
Fiquei muito tempo junto dela, até que adormecesse, pois saíra do nosso quarto havia pouco tempo, onde, descida a grade, sempre dormira com a sua caminha encostada a mim, atenta, afagando-a se se agitava, tapando-a se se descobria.
O pai habituara-a a dormir de luz acesa.
Conversei muito com ela, contei-lhe uma história, afagando suavemente os seus caracóis loiros de bebé.
Quando os olhinhos se lhe fecharam, a mão agarrando a minha, fiquei ali ainda, pensando junto dela na sobressaltada alegria que sentira ao ler no papel vindo da farmácia aonde levara uma amostra de urina:
– Positivo!
Exactamente a mesma palavra, num papel semelhante, estava escrita naquele outro, que o pai atirara sobre o móvel da sala, irritado, impaciente, indiferente ao filho que semeara e crescia no meu ventre.
Pus-me a olhá-la bem, à minha menina: recordei todos os seus momentos: o seu primeiro olhar, o seu primeiro sorriso, os seus primeiros passinhos... lágrimas de alegria desciam-me pelo rosto: em breve repetir-se-ia o milagre da vida que despertara e vivia, ainda silenciosamente, no aconchego de mim, se alimentava do meu sangue; era uno e indiviso comigo... Devagarinho, o amor por esse filho descoberto tomou conta do meu coração!
Deitei-me. Não sei quando o meu marido voltou: havia tanto tempo que só chegava de madrugada, cansara-me de o esperar, sequer de me afligir.
Ao outro dia, cumprida a rotina matinal das mães que têm muitas missões a cumprir antes de iniciarem as suas oito horas de trabalho numa cidade e deixarem os seus filhos entregues aos cuidados de uma pessoa longe, entrei no autocarro apinhado, corri para a fila do barco, segui no aperto de milhares de outros que vão de manhã para o trabalho de olhos mortiços, cumprido o destino de animais que vão para o matadouro e regressam à noite, exaustos e partidos, afim de recomeçarem as tarefas adiadas.
Da outra vez tinha dito às minhas colegas que estava grávida, tínhamo-nos congratulado juntas... desta, algo me fez calar o despontar da alegria, uma
incerteza indefinida, algo aparentemente inexplicável: a ameaça pairava como um cutelo afiado no brilho frio dos olhos do pai dos meus filhos.
Quando chegou para jantar, resmungou:
– Agora tens de te livrar disso, já sabes!
O meu coração apertou-se. Senti-me reduzida a nada, tremendo. A minha boca não se abriu, toda eu me concentrava no que acontecia dentro da minha barriga.
Ele foi “trabalhar”, como de costume.
Cumprida a lida da casa, deitada a filha no berço, encolhi-me na beirinha do colchão, sem me mexer, as lágrimas enfim soltas.
Ah a dor indizível da impotência que nos consome, sem remissão, sem nada nem ninguém que nos escute!
Na noite seguinte, trouxe uma caixa pequena, redonda, anónima e branca.
– Isto vai resolver tudo. Toma!
Trouxe um copo de água e ficou ali, de pé, verificando se eu engolia os comprimidos todos.
Poderia ser qualquer veneno. Obedeci sem proferir palavra.
Na minha roupa, nem uma mancha vermelha.
Portanto, repetiu-se a cena, a dose, fornecida por um farmacêutico cúmplice dele, amigo de farra, confidente e conivente. Todos os dias, nova caixinha branca redonda de plástico, sem dizeres, fechada com fita gomada, cheia de veneno a tomar obrigatoriamente à sua vista.
– Toma isto. Amanhã vem-te o período de certeza!
Engolia as lágrimas, os protestos e as drogas.
O filho tinha o nome de “menstruação atrasada”. Entre as mulheres que conhecia e com quem trabalhava esse problema era falado com tal frequência que se
banalizara.
Resolviam-se “os atrasos” tomando certos remédios, secretos, miraculosos.
Não lhes chamavam abortos, mas provocar o aparecimento da menstruação que se atrasara...
Na minha estúpida inocência, numa sociedade hipócrita onde não se mencionavam assuntos tabu, nem a palavra aborto, nem a sexualidade era considerada... como se os filhos aparecem do nada, trazidos no bico da cegonha, nada se discutia, não havia a quem colocar dúvidas, as questões permaneciam camufladas atrás da máscara opaca das “famílias respeitáveis”, aonde não aconteciam “certas coisas”
As senhoras respeitáveis, entre as quais trabalhava e me movia, que me falavam muito bem, me metiam no coração, me demonstravam estima e respeito... sabiam porém muito mais que eu: sabiam da vida dupla de meu marido mas... cala-te boca!
Eu tinha medo. Não tinha ninguém. Tudo se passava na solidão das quatro paredes.
Estava tão fragilizada, vulnerável, insegura!
Acreditava ainda que o homem que amava, porque ainda o amava, deveria ser o meu único confidente, confiava nele, muito embora a sua frieza me assustasse.
Me repugnasse a sua ambição sem escrúpulos; o calculismo com que ia ganhando terreno nos negócios... enquanto eu sustentava a casa, porque seria normal, uma vez que fazia as compras, pagá-las com o dinheiro do meu salário.
Tudo fazia para não o contrariar. Obedecia-lhe como uma cega, tentava não o desagradar nem nos pormenores. Colocava-me a mim mesma em último plano.
Anulava-me pelo bem-estar das duas únicas pessoas que tinha por minhas, às quais dedicava a vida: meu marido e minha filha, o conforto da casa, o desempenho profissional, as coisas prontas a horas certas, tudo deslizando como se rodinhas bem oleadas e invisíveis tudo arranjassem: a máquina invisível era eu, o óleo mágico que tudo fazia deslizar sem se perceber era o meu empenho e esforço.
Aos domingos, costumávamos visitar o meu padrinho de casamento, fino e sabido, que enfim decidira assentar junto de uma mulher ainda mais fina e sabida que ele:
Minavam aos poucos os restos do resto da minha família, insidiosamente.
O meu marido contou-lhes ao serão, com a maior naturalidade o “meu caso”... Eles foram unânimes e enfáticos em dizer que tinha de resolver “isso” depressa, pois ele agora não queria problemas... e que isso era fácil, banal, toda a gente o fazia...
Voltei mais animada.
Vínhamos sempre muito tarde e a minha filha deitava-se no banco traseiro do carro e adormecia.
Eu tirava-a com cuidado, embora já fosse muito pesada. Trazia-a aconchegada contra o peito, despia-lhe a roupinha e vestia-lhe o pijama sem que ela despertasse. Deitava-a e dava-lhe um biberão de papa-láctea, que ela engolia, tranquilamente, dormindo.
Tinha “muita prática e jeito”, dizia o pai dela.
Mas naquela noite despertou e viemos palrando até chegarmos à porta. Sentia-me aliviada e tão feliz!
Feliz porque a minha filhinha não seria, como eu, uma triste filha única, sem ninguém no mundo que a amparasse.
Sempre desejara ter dois filhos e tinha-os! Um ao colo, outro crescendo suavemente, aconchegadinho dentro de mim.
Enquanto o pai procurava as chaves, eu e a menina brincámos: num impulso, rodopiámos juntas, eu com ela nos meus braços, rindo em coro!
Toldou-se-me a vista e caímos no chão de mármore da entrada. Não nos magoámos, apenas me assustei por ela e pelo bebé pequenino. Consolei-a, subimos, tratei dela e deitei-a.
Nada se sangue na minha roupa... suspirei de alívio!
Quando ficara grávida da menina tivera sintomas de aborto durante muito tempo, fora uma gravidez sobressaltada, sempre no risco de perdê-la. Tinha muito medo que tal se repetisse.
Os medicamentos vinham todas as noites, obrigatoriamente.
Até que foi como se despertasse de um sonho estúpido.
Pensei: meu Deus! Quando estamos grávidas todos os medicamentos são perigosos; nem aspirina tomava receando prejudicar o bebé que trazia no ventre... e agora, que venenos estaria este pequenino recebendo através do meu sangue?
E se o meu filho nascesse deficiente?
Oh angústia suprema!
Oh dor cega! Oh tormento da culpa pela minha cegueira!
Como chegara a tal ponto, eu?!
Como deixara que me toldassem o espírito?!
O meu marido tinha preparado a marinada e ia cozer-me nela: atingira o seu fim.
Vendo-me chorar, porque sempre a morte estivera à minha cabeceira e eu crescera ao abandono, não tendo a quem entregar os meus filhos se algo me acontecesse... que seria do meu filho se, caso ficasse só no mundo, não pudesse valer-se?!
Era a oportunidade que ele esperava: insidioso como uma serpente, achando preparado o terreno, disse na sua voz melosa e falsa:
– Agora já nada há a fazer. Tens de ir a uma parteira. Levo-te lá amanhã.
Com a morte na alma, sozinha, pensava... e quanto mais pensava mais negro via: o bebé estaria deformado? O bebé sofreria? Até que ponto o seu sistema nervoso estaria já formado?
Como sentiria a morte, o meu filho?
Teria oito ou nove semanas... idade crucial. Que seria de nós?
Oh meu Deus, vão tirar-me o meu filho!
No dia seguinte, de manhã, fomos a uma vivenda com dois pisos, algures, nos arredores da cidade.
Veio uma mulher receber-nos. Olhou-me com olhinhos de víbora: muito nova, assim como o meu companheiro: íamos desmanchar algum arranjinho, pensou a
sanguessuga.
Entrei sozinha, ele foi para o carro ouvir música.
Era uma sala fria, com um sofá à esquerda e cadeiras de espaldar direito a toda a volta.
No meio da sala, uma mesa de vido, nua.
Sentadas nas cadeiras, três mulheres, que não levantaram os olhos do chão.
– Senta-te aqui um bocadinho. Não demora muito.
Atrevi-me a olhar de relance as outras e elas a mim, mas desviámos rapidamente os olhos.
Ninguém disse palavra. Rostos tristes, desanimados, mais frios que o frio que fazia. Ali permanecia um frio de arrepiar.
Sentia-se no ar a culpa. O peso da dor. O medo: o cheiro do éter.
Uma casa de morte; uma casa destinada a matar inocentes na impunidade escondida.
Só quem nunca lá esteve fala à boca rota... quem lá esteve cala-se e tenta esquecer o horror.
As mulheres foram entrando, uma a uma. Passada cerca de meia hora, voltava uma e entrava a que se lhe seguia. Realmente, tudo se passava num instante.
A minha vez chegou. O meu coração encolhia-se, como o de um passarinho apanhado.
Tinha medo. Uma incomensurável pena. Sentia um fardo pesadíssimo: ou nasce deficiente ou morre, pensava. Se nascer defeituoso seremos infelizes para sempre.
Subi para a marquesa suja. Pelo chão imundo, aparelhos cirúrgicos esquisitos. Havia, atirado para um canto, um molho de tubos, que lembravam um aparelho de ordenha, mais pequeno que aqueles com se tira o leite.
No quarto pequeno, duas damas autoritárias e secas. Estava tudo muito sujo e cheirava a éter, a sangue, a suor requentado.
Iam usar o método de aspiração, que estava na moda.
Perguntaram-me que tipo de anestesia queria: geral ou parcial. Disse-lhes do meu problema de coração.
– Nesse caso não te damos nenhuma, não vamos arriscar-nos a que nos morras aqui na marquesa!
– Afasta os joelhos, dobra-os, abra as pernas e descontrai-te.
– Respira fundo.
Uma dor lancinante rasgava-me o ventre. Tinha tanto frio!
Iam-me perguntando se era a primeira vez. Ficaram muito espantadas quando lhes disse que tinha uma filha de três anos e meio, que era casada e que o meu marido me esperava no carro.
Tremia de dor e de frio.
Num rasgo de benevolência, deitaram-me o meu casaco sobre a parte superior do corpo.
Não havia lençol, nem pudor, muito menos um cobertorzito.
As dores eram terríveis. Não pude impedir-me de gemer alto.
Ao fim de algum tempo senti um líquido morno molhar-me as pernas; senti o aspirador dentro de mim.
– Este estava bem agarrado! Riu-se a parteira.
Meu querido filho, que assim se ia!
Limparam-me com uma toalha turca e ajudaram-me a descer da marquesa.
Toda eu era dor, sentia o ventre em chaga viva.
Deram-me um calmante e deixaram que me deitasse um pouco, no tal sofá da sala de entrada, com o meu casaco por cima.
Já havia outras mulheres tristes na sala, mas mal as vi.
Só queria encolher-me em posição fetal e que me esquecesse ali!
Caí numa sonolência atordoada. Pedi que me mostrassem o que tinham sugado de mim.
Trouxeram um frasco dos de Tofina, cheio de água com uns fiapos de sangue a flutuar lá dentro.
Estendi a mão: estava frio, não era o meu.
– Acha que ele sentiu alguma coisa? Perguntei numa voz entaramelada.
– Se soubesse que estavas de tão pouco tempo, não to fazia!
– Se fosse de mais tempo, não fazia, não! Garanto-lhe que não! Só espero que não tenha sofrido muito!
Olhou-me como se eu estivesse doida:
- Um desmancho é um trabalho e um feto é uma colher de sangue coagulado!
Passados uns minutos, obrigaram-me a levantar do sofá e arrastaram-me até à porta da rua.
Lá fora estava o meu marido. Falavam em dinheiro. Eu estava com muitas dores e muito confusa, mal me aguentava de pé.
– Então, não tens aí cinco contos para pagar isto? – Perguntou o meu esposo, assassino.
De repente, fiquei lúcida, chocada, ofendida. Tinha feito aquela pergunta num tom desprendido, indiferente, como se eu fosse uma prostituta a quem ele dera
boleia.
Respondi que nem carteira trazia.
Ele pagou e amparou-me de má vontade até ao carro. Fui entrando devagarinho, gemendo. Sentei-me no banco, encostei-me, respirei fundo.
A maldição dele tinha-se consumado! Já nada havia a fazer.
O meu filho estava morto. O meu filho estava morto. O meu filho estava morto....Com esta frase a latejar-me na cabeça, nem dei pelo caminho.
Chegada a casa, deitei-me no sofá da sala para recuperar um pouco.
Ele saiu, foi para o trabalho.
Eu perdera um filho, sofria, perdia sangue, chorava.
Ele vencera: custara-lhe cinco contos e perdera, do seu tempo, uma manhã.
Aos poucos, agarrada às paredes, lá me arrastei para a cama.
Estive toda a tarde sonolenta, as lágrimas corriam-me pela cara abaixo.
O penso estava encharcado de sangue e eu sem forças para ir buscar outro.
Muito quieta, as pernas muito unidas, dobrada como um feto, sofria e chorava alto: Mataram o meu filho! Mataram o meu filho e eu, estúpida, deixei!
... Mas se nascesse deficiente, que seria dele, quando crescesse e eu lhe faltasse?
Oh, porque mataram o meu bebé?!
À tardinha, não havia jantar... ralhos e ameaças. Desta vez foi ele que cuidou da menina e a deitou.
Saiu de novo.
No meu emprego, dei parte de doente.
Ao segundo dia, arrastei-me até à sala, deitei-me no sofá.
A minha filha passava os dias na ama, não sei se esta sabia se não.
Não contei a ninguém.
Chorei dias e dias seguidos. Sentia-me molhada e vazia. Sentia-me de luto.
Sentia muitas dores, mas sobretudo sentia a perda do meu filho.
Tive febre. Fui à minha ginecologista, minha amiga, que viu e nada comentou.
Tratou-me da infecção e fingiu aceitar uma desculpa esfarrapada, até que eu estivesse preparada para desabafar com ela.
O meu ventre curou-se pouco a pouco, a minha alma há-de doer sempre!
Carreguei esta minha dor sozinha, por quinze anos, a chorar todas as noites.
Por fim coloquei este defunto bem à minha frente, despedi-me dele e coloquei-o com carinho ao lado dos outros, que guardo num lugar da alma, pois não consigo enterrá-los.
Maria Petronilho