O ESTRANHO CASO DE JASMIRO

Sempre fora diferente... estranho. Ao completar 15 anos foi a paixão pelo Ave Maria. Tinha que rezar Ave Maria a toda hora: na sala de aulas, no almoço, no jantar, no mercado, até no campo de futebol enquanto os amigos jogavam uma pelada. A mãe começou a sentir vergonha dele, mas não confessava.

— Ele vai ser padre ou frei — comentou para as vizinhas que o olhavam assustadas, nesse domingo ensolarado.

Mulheres, homens, velhos e crianças estavam nas portas das casas, com os olhos fixos no Jasmiro. O bairro inteiro observava-o.

Jasmiro, com ar de beato, o cabelo preto despenteado, camisa e calça brancas, o terço na mão direita e uma imagem de nossa senhora na esquerda, ia e voltava rezando a Ave Maria.

Era cômico vê-lo caminhar até a esquina e voltar até a portão de sua casa. Ficava uns minutos parado, levantava a cabeça para enfrentar o céu azul e caminhava de novo até a esquina. O passeio durou horas. Um menino disse que o Jasmiro parecia com um desses brinquedos antigos, movidos a corda.

Aos 16 anos cansou-se do terço. Colocou carvão no pátio, plantas secas, jogou álcool e tacou fogo. Quando as chamas cresciam incentivadas pelo vento de outono, jogou o terço e a imagem de nossa Senhora dentro. Ficou olhando até tudo queimar.

— Ave Maria! — exclamou a mãe assustada — Por que fez isso?

— Virei crente. Não posso adorar imagens.

Então começou a visitar as casas para dizer: Jesus Salva. Tocava a campainha. O moradores saiam e ele gritava: Jesus Salva. Imediatamente encaminhava-se para outra e fazia o mesmo.

Tânia, a artesã que morava no sobradinho pintado de amarelo, com uma palmeira no jardim, não saiu. Jasmiro, teimoso tocou a campainha várias vezes. A vizinha, também teimosa ficou diante da TV.

— É aquele rapaz maluco — disse Ramona, a diarista, enquanto limpava os vidros da sala.

— Não liga que ele vai embora.

Mas não foi. O ruído da campainha incomodava. Ramona queria falar com o rapaz. A artesã, teimosa, enfatizava:

— Esta é minha casa e posso fazer o que bem entender. Não vou sair.

O ruído agudo da campainha incomodava até os vizinhos. A velha que morava do lado, colocou a cabeça para fora da janela e gritou:

— A Tânia não está rapaz! Se estivesse em casa teria escutado... deve ter saído...

— Ela está, sim! — disse ele com voz rouca e infernal — só que ela não quer aceitar a Jesus!

— A Tânia vai na Igreja nos casamentos e batizados — explicou a velhinha.

— Não é o suficiente — contestou ele enquanto apertava o botão da campainha com força, depois com fúria... apertou... apertou... até que a campainha fez um barulho ensurdecedor e apareceu uma pequena chama laranja com bordas azuis. Um pouco de fumaça ondulante e a campainha deixou de funcionar.

Jasmiro não desistiu. Começou a bater palmas e depois a chutar a porta com violência. Por fim, a artesã saiu.

— Jesus salva ! — gritou o rapaz.

— Só isso?

— Só isso! — confirmou ele com ar de salvador do mundo.

— Seu filho da mãe! Por isso estragou minha campainha?!

Aos 17 anos, Jasmiro, entrou num movimento orientalista. Então só falava de karma e reencarnação. Era o karma isto e o karma aquilo. A roda da lei e o sermão do Buda. Raspou o cabelo. Fez-se vegetariano. Comprou um pano açafrão que usava como túnica. E falava das Quatro Nobres Verdades e do verdadeiro caminho espiritual. Não dava para aturar.

Fazia questão de ir nas festas dos parentes e enchia a paciência de todos, contando a vida de Buda. Todos fugiam dele. Jasmiro sabia que era preço pela sua devoção.

Sua mudança atingiu a família. Não se podia mais fazer churrascos aos domingos, pois aderira ao vegetarianismo. Ficou magro e pálido. Passava longas horas sentados no jardim repetindo palavras que ninguém entendia, as quais ele chamava de mantras.

A mãe, assustada, levou-o ao posto de saúde para consultar um médico. Contou as mudanças do filho.

— Ele bateu a cabeça quando criança? — perguntou o médico

— Bateu, sim... — respondeu a mãe — bateu várias vezes no parquinho.

O médico receitou um remédio. O Jasmiro não tomou. Impassível ante os rogos da mãe dizia que era o karma e que iria suportar assim mesmo, sem medicina.

— Os anos passam mas ele não melhora — falou o pai, desiludido enquanto tomava chimarrão na cozinha.

— Já estou perdendo a fé ... ele muda de religião, mas continua o mesmo — confessou a mãe. Colocou o bolo no forno e olhou triste para o marido.

— O problema não são as religiões... todas são boas, velha —acrescentou ele olhando a esposa com carinho. — O problema é mesmo o nosso filho. Ele é fanático como alguns torcedores de futebol.

— Pior que torcedor fanático de futebol — enfatizou a mãe.

Aos 18 anos se fez ateu.

— Se é para o bem dele — dizia o pai.

— Que nada! Desse jeito vai ir para o inferno! — retrucava a mãe.

— O Jasmiro nada queria saber... só falava de engenharia genética, de DNA, de métodos para clonar pessoas. Discursava para os vizinhos dizendo que a origem de tudo não era Deus, era o Big Bang.

— Você acha que... o big....bbb.... o relógio da Inglaterra, é a origem de tudo? — perguntou um eletricista que lia o jornal aos domingos e tinha fama de intelectual no bairro.

— Cruz credo... — disse uma costureira.

— O rapaz é louco! — exclamou Ramona, a diarista da artesã.

— Eu disse Big Bang não Big bem! — bradava Jasmiro

— Big bang não é o relógio da Inglaterra, foi a grande explosão que deu origem ao universo — explicava para os menos informados. Nem ouviam. As fofoqueiras espalharam que o Jasmiro pensava que o relógio da Inglaterra era a origem do universo. Passaram a rir dele. Até as crianças faziam piadinhas sobre o sujeito.

Jasmiro deixou crescer um bigodinho, barba, começou a fumar cachimbo e colocou óculos escuros. Tudo isso para se dar ar de intelectual.

A família estava cansada. Levaram a fotografia para uma benzedeira, fizeram demanda, acenderam velas, queimaram incenso, jogaram água benta sobre ele. Tudo em vão. O Jasmiro virara ateu mesmo.

Sete meses depois de completar 18 anos, a sobrinha da vizinha, a Mariazinha, veio do interior para ficar com a tia que fora abandonada pelo marido. Tinha o cabelo pintado de loiro claro, pele branca e olhos esverdeados. Com um sorriso meigo e um certo olhar de moça independente. Usava blusas vermelhas curtinhas com decotes exagerados e jeans apertadinhos. Escandalizava o bairro mostrando o umbigo e o rebolado.

— Parece uma boneca — pensava o Jasmiro.

Olhava-a de longe quando ela barria o pátio ou saía para fazer compras. Se a Mariazinha o encarava, ele se escondia atrás dos óculos, encabulado.

Um dia Mariazinha estava na porta. Jasmiro olhou-a pela janela e foi até o jardim. Fingiu observar as plantas. O jardim era uma miscelânea: gerânios, margaridas, beijinhos, cravos, rosas, amor-perfeito, tulipas, violetas e outras plantas.

Mariazinha aproximou-se. Ele agachou-se para ver como crescia um amor-perfeito.

— Que você está fazendo?

— Olhando o crescimento das plantas.. não precisam de Deus para crescer... só de solo e água — discursou o Jasmiro.

— Você é metido a besta! — disse a Mariazinha — mas eu gosto de você. Tem uma bunda bonita!

Jasmiro olhou para ela sem saber o que dizer. Levantou-se.

— Minha tia saiu. Deixa de olhar as plantas, elas crescem sozinhas. Vamos transar, seu babaca! — quase ordenou a Mariazinha, beliscando-lhe a bunda com um sorriso estonteante.

Ele sorriu timidamente. Vergonha de dizer que era virgem.

— Você tem camisinhas?...— perguntou ela com ar de safada

Jasmiro só mexeu a cabeça para os lados em sinal de negação. Tinha ficado mudo. Mãos trêmulas. Testa suada. Coração pulando do peito.

— Mas eu tenho... — murmurou ela pegando-o da mão.

Nunca mais se escutou Jasmiro discutir sobre a existência de Deus. Agora tinha uma nova diversão. Diversão a dois... e não tinha tempo para especulações filosóficas. Passava o tempo todo dando cantada nas meninas do bairro, malhando para ficar musculoso e transando com a Mariazinha, menina insaciável. Para ele o mundo se havia transformado num verdadeiro paraíso.

Isabel Furini

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