O mendigo
As estrelas nunca brilharam tanto, nem com tanta nitidez; pareciam querer despencar do céu sobre a sua cabeça aquelas imensas bolas de luz. Já não sentia mais dor, não sentia o próprio corpo, estava dormente da cabeça aos pés, leve, quase a flutuar. Manteve os olhos bem abertos para não perder nada daquele espetáculo. Pela primeira vez, sentia-se parte de um todo, de algo maior. Então sorriu, movendo a pele enrugada e cinzenta de seu rosto. Murmurou palavras incompreensíveis, em estado de delírio ou de graça plena. Soltou um grito abafado e, em seguida, um longo suspiro, quase um lamento que somente aquelas imensas estrelas multicoloridas ouviram.
Sua presença sempre fora um incômodo, mas tolerada, da mesma forma que os restos de uma construção ou o lixo num terreno baldio. Para algumas pessoas que passavam apressadas em direção ao trabalho ele representava a incompetência das autoridades públicas, que permitiam que “aquilo” permanecesse ali, aquela ferida exposta em pleno estacionamento público, no centro comercial da cidade. Outras, cheias de espírito cristão, depositavam moedas de pequeno valor, algumas vezes acompanhadas de conselhos edificantes sobre o valor do trabalho. Ele apenas ouvia calado e mantinha os olhos, sempre muito vermelhos, fixos no interlocutor. Um olhar que pedia perdão, perdão por ainda estar vivo.
Quem mais, além dele, poderia ter roubado a capa do cd player, os CDs e o celular do jovem executivo que, por distração, tinha deixado aberta a janela de seu carro novo? O carro tinha sido estacionado embaixo de uma grande árvore, ao lado daquele corpo velho, invariavelmente deitado sobre uma caixa de papelão dobrada. O jovem executivo, com certo nojo, chutou de leve o corpo franzino, que exalava mau-cheiro. O velho abriu os olhos sonolentos e viu um vulto de um homem alto. Não conseguiu entender o que aquele homem dizia; seria um sonho? O executivo, impaciente, pensou em chamar a polícia, mas se lembrou que o seu celular-último-modelo tinha sido roubado. Além do mais, não tinha tempo: “time is money”. Olhou para os lados, ninguém por perto. Chutou com vontade e raiva a barriga do velho, que soltou um gemido e arregalou os olhos, um olhar que gritava, implorava: perdão!
O velho passou várias semanas muito doente, mal conseguia se levantar e ir até o depósito de lixo, onde retirava os restos de comida de um restaurante self-service que se orgulhava de ter uma excelente clientela. Ficou deitado, aproveitando a sombra da velha árvore. Numa noite de febre e calafrio, teve um sonho terrível: estava nu e tremendo de frio no centro de um grupo de pessoas que riam dele e o empurravam. Não conseguia vê-las, eram vultos negros. O círculo foi se fechando mais e mais, as gargalhadas ressoavam altas em seus ouvidos. Ele se curvou como um recém-nascido e então sentiu o primeiro golpe na cabeça...
Ricardo Borges