Capinzal
Um certo dia, numa tarde de ventos do oeste, algo não estava normal. Não era como outras tardes. B. recolheu-se para a cozinha a fim de preparar o jantar, pois o Tonho já iria voltar do campo. Porém, havia algo de diferente no ar.
Estavam à mesa quando, de repente, bateram na porta. Tonho atende: é um viajante pedindo abrigo, pois o temporal estava assustador e seria impossível continuar sua jornada. Servem-lhe a sopa, que ainda estava quente, dão-lhe roupas secas e uma esteira no canto da sala próximo à lareira.
Digo ao Tonho que o forasteiro não é como os outros. Ele diz pra eu deixar de cisma... Ele sempre tem razão, pois mulher tem miolos fracos, ele, que é homem é que sabe das coisas. Naquela madrugada, os ventos estavam mais fortes do que o costume, o capinzal parecia desmaiado, como se o vento houvese sugado suas forças.
Bem cedinho, desci para preparar o café, quando percebi que o forasteiro estava a ceifar capim para os cavalos e o Tonho o observava: Preciso pagar de alguma forma a acolhida e a benevolência recebida.
Sol a pino, sirvo o almoço, não consigo tirar os olhos das mãos e dos pés do desconhecido. É como se alguma força me atraísse. Nunca vi dedos tão perfeitos, bem desenhados, tão diferentes das unhas do Tonho; aliás, acho que nunca vi outro dedo a não ser o do Tonho. Essa é a primeira vez que percebo que pés e mãos não são simples partes do corpo. São como chaves para portas que ainda estão fechadas.
-E, então o que fazes por essas bandas? diz, Tonho.
-Procuro aprumar minha vida...
-Não tem família, é sozinho?
-Ah Deus não me felicitou, assim que nem o senhor que tem uma casa, uma boa esposa...Sou um pobre diabo que sobrevive a cada dia com o que a sorte me guarda.
Minha Nossa Senhora, fiquei paralisada, “boa esposa”. Pensei, nunca ouvi isso...Elogio era desconhecido em seu mundo. Ali, no seu habitat era apenas um utensílio doméstico, uma composição característica daquele ambiente rude e marrom. Uma mulher que não sabia o que era ser mulher, às vezes se achava parecida com os animais. Com a diferença de que Tonho passava muito tempo a cuidar deles.
De tempo em tempo, passavam pela região uns vendilhões com suas quinquilharias. Da última vez, implorei ao Tonho que comprasse um exemplar de uma revista que retratava a moda francesa e trazia na capa uma foto de uma atriz. Apesar de a revista já estar amarelada devido ao tempo e de eu saber que nunca iria usar um daqueles vestidos, fiquei horas a contemplar as fotos e a sonhar com cenas que eu construía limitadamente, pois eu não conhecia o mundo, não sabia o que era a vida além do capinzal, e, assim, não tinha como idealizar meus próprios desejos. Nem mesmo tinha consciência de que os tinha.
Ali, sentada em minha cozinha, olhando pela porta, notei que o meu olhar era moldado à forma das janelas e portas daquela casa. Que a claridade do sol nunca era límpida, pois sempre a percebia pela sombra de algum cômodo...Quando, de repente, o estranho atravessa minha visão, achei que fosse impressão, mas não era, ele estava a me espreitar. Fingi continuar em meu devaneio...ah...o tempo não passa. É...a vida no campo é tranqüila, porém ela tem dessas coisas, disse-me ele, e acrescentou “na cidade, não...é corre-corre, é impossível ver o tempo passar. Quando nos damos conta, aí já se foi o dia.”
-B! gritou Tonho. Já disse que não quero você de conversa com esse sujeitinho, aliás, não sei o que ele viu na sua prosa para lhe dar tanta atenção. Você não tem nada dentro dessa cachola .
Na manhã seguinte, o vento voltou a soprar do leste. B. sentiu novamente algo de diferente, mas com um pouco mais de naturalidade. Parecia que a mudança havia se sedimentado.
Sol a pino, Tonho volta do campo, senta-se à mesa e percebe que, naquele dia, o fogão não fora aceso.
Fernanda da Silva Santos