Para Onde Correm as Águas do Rio Verde?
I
Acabara de chegar. Saltei do ônibus e olhava à minha volta. Não saberia dizer como me sinto, sensação que me tomou desde que recebi a notícia. Ausência de sentimento. Talvez, por isso, culpa dissimulada. Velada. Como que varrida para baixo de algum tapete no canto de meu cérebro. "Hei, é seu irmão! Por quê não chora? Onde esteve seu coração nos últimos anos?". Quem sabe a malha do tempo, entretecida com mãos cuidadosas e experientes, como de uma velha e hábil tecelã, se encarregou de velar esses sentimentos imperceptivelmente? Uma barreira contra a saudade. Mesmo após receber a notícia de sua morte, o morno edredom do tempo acalmava meus sentidos de alguma maneira desconhecida.
Afora contatos esporádicos, não experimentava qualquer outra relação com meu irmão mais velho; "quanto tempo já ia?". Minha tradição urbana não permitia aventuras e só me apazigua o caos das metrópoles - a iluminação anônima e gasosa dos néons que tomam a noite de assalto. O odor familiar da fumaça cuspida dos escapamentos em cada esquina. Por isso, jamais havia colocado meus pés em Rio Verde. Razões idênticas as que me acorrentam ao asfalto, motivaram-no décadas atrás a viver em meio à assustadora natureza, como artesão. Sua morte agora parece uma dose bem administrada de anestésico em meus sentidos práticos.
Fito à minha volta novamente. Aqui estou pela primeira vez e a pequena cidade com sua cadeia de montanhas cobertas por densa vegetação e as casas que pareciam arrancadas do espaço, do chão, já visível da pequena rodoviária me inquietam deveras. Mais do que a própria morte.
Ainda mais do que a morte de meu esquecido irmão. No ar, voa o som da forte correnteza do Rio, na Terra descansa a modorra preguiçosa. Nuvens indicam que poderá chover. Na realidade não sei. Pode ser que não chova.
Ele está morto e preciso ser prático, como sempre. O velório já deve ter-se iniciado. Amanhã o enterro. Fumaça, então.
II
"Não há como errar. Não temos muitas encruzilhadas por aqui". O garoto estava completamente certo. Algumas ruas de pedra, de paralelepípedo, outro tanto de chão. Ao todo, poucas. A capela ao lado do acanhado cemitério florido demais não comporta espaço para mais que um velório por vez. Um local onde a morte não existe coletivamente, decerto. Como transação solitária, em Rio Verde talvez ainda mais. O frêmito por acidentes e desgraças coletivas que acometem os grandes centros, que lhe dão vida em meio ao sangue, não faz, aqui, muito sentido.
A contar pelo número de pessoas no interior da capela barroca, é fácil crer que meu irmão era de fato querido na cidade. Uma aritmética fundamental, básica, dizia-me que a quantidade de pessoas quase que espremidas em seu interior não condizia com o pequeno pedaço de terra que formava a cidade. Ou se faltavam casas ou se sobravam pessoas, imaginei. Esgueirei-me, abrindo espaço no meio da pequena turba, desculpando-me e indo adiante, até que enxerguei a caixa de madeira. O rosto, onde o tempo esculpira nova feição ainda me pareceu familiar - infelizmente talvez. As cortinas abriram e na tela de minha memória a projeção iniciou. Sem meu consentimento, friso. Meus olhos marejaram - como impedir que aconteça? Nossas memórias são como um sótão povoado de morcegos; vampiros que dormem durante o dia. Esperam um pequeno raio de luar para novamente esvoaçarem ao vento frio da noite. E assim, fitando o rosto estranhamente familiar de meu irmão, cercado de flores bizarramente perfumadas de morte, lembrei de tudo quanto passamos juntos antes de nos separarmos. É claro que chorei. Muito. Costumava encarar os golpes do acaso como desafios à força espiritual que possuía, neste momento, porém, apenas deixava-me levar.
III
Alguém se encarregou de fechar o ataúde. Perdi esta parte. Completamente entretido comigo mesmo, levantando a poeira do sótão. Restavam, no momento, algumas poucas pessoas no interior da capela. Hora das despedidas. Desci de onde me encontrava, minha atenção desviada para uma mulher. Agora éramos três no interior da capela, seu rosto iluminado por uma beleza que considerei incomum naquele lugar estava vidrado em meus olhos. Retribui seu olhar, não restava muito para se ver de qualquer jeito. A moça caminhou em minha direção, fazendo seu vestido de fino algodão colorido acompanhá-la obediente.
"Não te reconheço. Ou reconheço-te sem te conhecer". Seus gestos eram assaltados por profunda tranqüilidade. Transparecia leveza, como se os raios do sol pudessem atravessá-la sem dificuldade.
"Não me espanta. Afinal, eu mesmo fiquei surpreso com a semelhança que ainda guardo com meu irmão".
"Claro. Seu irmão. Fácil adivinhar. Não sabia que Leandro tinha irmão, não me recordo de ouvir menção. Acho que não falava de sua família. Não devemos lamentar além do lamentável. Leandro se foi; assim...". Com as mãos pareceu imitar o vôo de uma borboleta. "Ou quem sabe está apenas encasulado? Sou Mariana". A morte encarada quase insolentemente.
"Sou o irmão mais novo, Marcelo. Conhecia meu irmão há muito?". Aproximei-me de Mariana. Sua presença era fácil. Como fogueira no frio.
"Desde sempre. Ou mesmo antes. Acho que o rufar das águas cristalinas - ouve? - o acorrentaram para sempre aqui. A voz hipnótica do rio. Até que resolveu partir. Mesmo onde está, terá saudades e pensará que pode colocar seus pés na água gelada, ver o rio correr novamente".
"É uma idéia confortável. Do modo como fala, mesmo eu, tenho ímpetos de conhecer o rio. A sereia que canta tão belo. Quem sabe um dia?". Fitei seus olhos. Pensei ver águas que se quedavam enquanto me encarava. Por instantes esquecia de Leandro.
"Sim, por que não? Seria um desrespeito não fazê-lo". Sorriu.
"Uma curiosidade. Se todos são como você, desconhecedores de minha existência, que mãos podem ter escrito o telegrama que me chegou ontem mesmo?".
Mariana empertigou-se espichando os ombros, sobrancelha para cima, como aquela que diz: "não tenho respostas pra você". Ou ainda: "perguntas demais!". Olhou em direção à saída. Nossa conversa havia chegado ao fim.
Emparelhou comigo e fomos porta afora. Apaguei a luz antes disso, fazendo o ataúde desaparecer na escuridão. Deixamos Leandro dormir sua última noite acima do chão sozinho no interior da humilde capela.
IV
Uma festa pode parecer com outra. Não são iguais. Até a aula de um professor difere de uma turma para outra. Enterros são sempre idênticos. Qualquer detalhe que possa diferenciar um enterro de outro inexiste, pois não é percebido.
O cemitério tão apinhado quanto ontem a capela. Não chorei mais. À saída avistei Mariana. Saía sozinha pelo portão, consigo o jeito flutuante. Tomou direção oposta à maioria, passou adiante, seguindo para a calçada estreita, onde eu encostado numa árvore pintada de branco até a cintura não fazia nada especial. Fitava a medonha natureza empedernida que lançava pro alto seus picos marrons, onde rareia a vegetação. Chamei sua atenção.
"Não te vi lá dentro". Ela falou, o sorriso emergindo naturalmente. Ela não era capaz de evitá-lo, imaginei.
"Pois agora, vê".
"O que te resta, então? Retornar?". Ela perguntou.
"Sim. Talvez hoje mesmo. Há ônibus partindo hoje".
"Pode parecer troça, peço que não me leve a mal" ? olhos de procurar pedrinhas - miravam o chão. Encarou-me novamente. "Por que não fica até amanhã, apesar do ocorrido, é assim. Passou. A festa da cidade é sempre atraente. Para quem já se encontra por aqui é uma boa oportunidade para conhecê-la. E não me diga que não é tempo de festa pra você. Posso tentar ser condescendente e aceitar outra desculpa. Capaz de me convencer realmente de que não deveria estar aqui amanhã e acho que não existe".
Festa de Rio Verde. Um dia após o enterro de meu irmão. Por quê não me senti culpado de tomar a decisão tão rapidamente? Balancei a cabeça assentindo. Acho que é isso. Passou.
"Vai gostar. Sabemos como fazer uma festa, Rio Verde sabe comemorar sua existência. Encontra comigo ali no início da noite. Sete horas?" Perguntou, apontando para a praça principal. Gente, barracas, bandeiras coloridas.
Assenti novamente. Por quê? Talvez por Mariana? Com certeza, não por Rio Verde. Girando o corpo sem deixar de me encarar, ela se ia. Antes que fosse de vez, ainda interessava-me tirar uma dúvida, algo que me inquietou durante a manhã de enterro.
"Mariana, talvez uma bobagem, acho que não devo nem ser levado a sério. Mas gostaria de esclarecer algo. Quem sabe atestar que posso estar enlouquecendo de vez!".
"Não creio que o irmão de Leandro seja um louco". Ela flutuava.
"Prefiro duvidar também. Ontem, durante o velório, percebi muita gente dentro da capela".
"Te assustas com isso?". Seu cabelo levemente dourado esvoaçou com um lufar de brisa fresca.
"Hoje, o mesmo. Muita gente no enterro. Porém algo me inquieta, prestei atenção, não é verdade que todo o tempo estive distraído. Afora
você mesmo, não reconheci, hoje, no cemitério, nenhuma outra pessoa. O que parece é que não eram as mesmas pessoas presentes ontem no velório e hoje, no cemitério, exceto você mesma". Tive cuidado de não demonstrar estar por demais aflito, minha vaidade não o permitia. Atenta, Mariana continuou firme em sua tranqüilidade hercúlea.
"Não és um bom fisionomista? Espero sinceramente que não esqueça de meu rosto. Gostaria de sua companhia para a festa". Em passos leves, sem voltar o olhar, apontou para a praça e em tom musical: "Sete horas. Amanhã".
Acompanhei sua figura enquanto dava a volta na praça e desaparecia por uma esquina. A preguiça das ruas contrastando com a firmeza da floresta medonha, que abraça toda a cidade com força. Tanto verde. Pedras demais. O rio que não desiste de soar como uma trilha sonora onipresente. E os malditos rostos sem pressa dos transeuntes que nunca se repetem,
como peças de quebra-cabeça. Por quê continuo aqui? Estarei deixando de
ser tão prático?
Leandro parece ter morrido séculos atrás.
V
Não passei uma noite das melhores. Num de meus sonhos, alcancei a beira de um rio cercado por densa vegetação após vagar sem direção durante longo tempo. A pequena trilha que me carregou até lá deixou de existir tão logo toquei a água gelada com os pés. Na margem oposta, um rosto familiar me fitava. Mariana. Tentei gritar para que me ouvisse, algo me inquietava. Com gestos ela fazia que não conseguia ouvir; a correnteza do rio berrando junto comigo ecoava por entre as furnas. Na realidade, estava com muito medo e pedia que Mariana me explicasse o que estava acontecendo. As águas do rio, que passavam rápidas, frias e cristalinas por meus pés continuavam a correr. Com força. Cada vez mais fortes. Contudo, um assomo de terror me tomou ao perceber que corriam ao contrário. As águas subiam pavorosa e desobedientemente o rio, em direção ao pico das montanhas.
VI
O líquido cor de cobre quase alcançou a borda do copo. O sujeito dentro da barraca empoleirou a garrafa de volta na prateleira, enquanto anunciava a próxima rodada da roleta. Entre dentes, sussurrou:
"Isso é o que chamo de uma bela aguardente".
Assenti, levando o copo à boca, convidando-o para um brinde. Os copos se tocaram e ele sorveu o conteúdo num gole. Encostado à armação da barraca, fitava as pessoas que apostavam num dos 99 números, ansiando por pobres prêmios. Rio Verde sabia fazer uma festa. Pessoas como enxames, barracas aos montes. Grupos mascarados, ensaiavam passos de danças desconhecidas. Seus rostos assumiam feições macabras na nova pele. Estática. Minutos que antecedem o temporal. Um senhor atarracado, com mãos de enxada e pele de madeira a meu lado, aguardava com interesse o girar da roleta numerada. Pendurada nos fundos da barraca imitava um grande relógio de parede de algum planeta perdido, onde existem mais de 24 horas num dia. Quando o último número foi vendido, o sujeito da barraca deu um piparote fazendo o girar da roda confundir nossos olhos e o tic-tic-tic-tic criar expectativa nos apostadores. O senhor por debaixo de sua pele amadeirada grunhiu baixo sem me encarar.
"Trinta e sete".
Em seu último estertor a roleta estacou. Tic. Uma mulher saltou com seu bilhete à mão, reclamando seu prêmio. Trinta e sete vale um panda de pelúcia. Trinta e sete.
Novo piparote. Tic-tic-tic-tic-tic-tiiiiiiic.
Desta feita ele me encarou. Sua mão pesada tocou a minha. Resmungou "onze". Voltou seu olhar novamente adiante, esperando o último suspiro da roleta.
"Quem tem o número onze? Mostre a cara ou perca seu prêmio!". Com olhos perscrutadores o sujeito da barraca mirava por cima a pequena multidão.
Cuspido do grupo, um garoto pegou seu prêmio entregando o bilhete. Onze.
Antes de rodar novamente a roleta, do interior da barraca de madeira o sujeito encheu novamente seu copo. Entornou bebida também no meu. Olhou
para o velho, com uma ponta de sarcasmo não disfarçado sussurrou em meu
ouvido: "Ele sempre acerta. Nunca aposta".
"Noventa e cinco". Foi a resposta do velho.
Estranha cidade, pensei. Mariana irrompeu, pescou seu espaço e pôs-se a falar.
"E então? Não é uma grande festa?".
"Sim. E tanto. De onde saem tantas pessoas? E suas máscaras? Me fascinam tanto quanto a música". O som que tocavam parecia cada vez mais alto. Assim como eu mesmo, depois de cada copo de aguardente. Mariana se serviu de bebida também.
"Fascinantes. Mira, olha lá!".
Um grupo de gigantes bonecos, andando como titãs, quase em câmera lenta tomava conta da praça. Desafiavam os mascarados, que dançavam em círculos, elipses. A música quase tocou o céu. Novo gole.
"Essa é nossa cidade. Essa é a cidade de seu irmão". Andando, nos afastamos um pouco da barraca e chegamos mais próximos da praça, onde um duelo entre titãs magníficos e medonhos mascarados se travava. A pequena multidão delirava, a música entorpecia corpo e espírito. Perguntei-me por instantes se sonhava.
"Temo dizer que esta era a cidade onde Leandro vivia". Quase gritei para ser ouvido.
Mariana deu de ombros. Levando o copo à boca, fitava o espetáculo. Com a ponta do indicador girei seu queixo. Seu rosto me encarou. Colei meus lábios ao dela. O calor da saliva maior do que a do próprio aguardente. A dança feérica nos arrastou com ela alguns passos.
Tropeçamos. Outro beijo.
"Acho que não devia...". Desta vez, após longo gole que parece ter eriçado toda sua pele, foi Mariana quem me puxou para si. "Essa é nossa festa, irmão do Leandro". Apertou sua boca contra a minha uma vez mais. Assustadas, as pessoas fugiam, às pressas, dos mascarados e dos mágicos bonecos que balançavam em todas as direções, anunciando ameaças. Não sei
quanto tempo durou tudo isso. Tanto quanto um relâmpago. Mais do que um
sonho. Um ano inteiro. Encostamo-nos novamente junto à barraca. Os copos vazios. Em meu coração, um quarto se abrira dando lugar a uma hóspede. Mariana. A confusão ainda aplacava meus sentidos, porém algo acontecera.
Além de me apaixonar pela mulher com cabelos levemente dourados. Mariana,
curiosa, perguntava-me o que ocorria. Claro, tremia. Minha mão enregelou.
Quase desfaleci. Repentinamente estava esgotado e apavorado. "Desejava
deitar, dormir. Precisava descansar, apenas isso". Ela assentiu simulando
acreditar. Com certeza percebeu que mentia. Preferia nada revelar a
Mariana. Não gosto de hospícios, decidi, pois, esconder o que me
aterrorizava. Contudo, momentos antes de encostarmos novamente na barraca
onde a roleta em breve giraria uma vez mais, eu vi. No centro da praça. Estava lá e não tenho dúvida quanto a isso. Ao beber do copo um gole de aguardente, um dos mascarados ao retirar seu rosto falso, revelou o
verdadeiro. Era Leandro. Meu irmão. Dançava, junto com aquele estranho
grupo, a onírica coreografia.
Com Mariana a meu lado, andamos em direção à pousada; no rosto, disfarçada apreensão. Ainda fui capaz de ouvir o sujeito da barraca em
meio a toda aquela agitação: "Quem tem o número noventa e cinco? Mostre a cara ou perca seu prêmio!".
VII
Acordei como quem ainda dorme. Os sentidos indolentes negavam-se a levantar. Rio Verde nas veias. Apenas enxagüei o rosto rapidamente. Meus
nervos recordavam da festa passada, mesmo contra minha vontade. Desci o
pequeno lance de escadas fechando a conta à saída da hospedaria. Devem
possuir um funcionário para cada dia da semana, imaginei, encarando o
rosto desconhecido da mocinha atrás do balcão. Direto à praça principal.
Meus Deus! A máquina deve estar muito bem azeitada, não existem
resquícios da estranha festa. As coisas funcionam tão bem por aqui?
Minto. Barracas, bandeiras, elas estavam lá. Mas o pessoal da limpeza
urbana já havia feito seu serviço. A praça brilhava, não havia lixo. Aproveitando sua passagem, indaguei a um transeunte sobre o paradeiro de Mariana.
"Mariana... Acho que não posso ajudar. Ela é daqui?".
Receei mandá-lo às favas. Ora. De onde seria? Uma mulher que passava foi meu próximo alvo.
"Não lembro de ninguém com este nome. Ela virá à festa?".
O rio roncava inapelavelmente. As montanhas, que jogavam a cidade no fundo do vale ainda persistiam. Seu verde roubava meu oxigênio, ofegando minha respiração. Como encontrar Mariana, mesmo sua casa? Alcancei a barraca com a roleta-relógio. Dentro dela um sujeito arranjava últimos preparativos. Outrem. Não reconhecia sua fisionomia. "Não és um bom fisionomista?". Mariana sussurrava em meus ouvidos de algum lugar, talvez a voz da mata, das folhas caídas, das rochas espicaçadas. A voz do Rio.
"Hei, meu amigo, sabe onde posso encontrar Mariana?".
"Procura por alguém?". Do interior da barraca de madeira, o sujeito falava sem me fitar, com rosto de bom dia.
"Sim. Alguém da cidade. Procuro por Mariana". Mariana, será que estão me ouvindo seus desgraçados indecentes? Minha vontade era berrar alto no centro da praça para que todos percebessem minha presença. Abafar a inescrupulosa voz das águas que não cessavam de correr.
"Talvez procure no instante errado, moço. Devemos saber onde e quando achar o que procuramos". Desta feita o sujeito me fitou. Encarou firme e profundamente meus olhos. Duas bilhas negras e decididas.
"Sabe pelo menos onde está o sujeito que comandou a roleta na noite de ontem, durante a festa?" Minha indignação transcendia. Estava desnorteado. Amedrontado.
"Conhece nosso rio?".
"Às favas com vosso rio. Às favas essa maldita cidade e sua maldita roleta".
"É necessário que termine os preparativos. A festa será grandiosa e minha barraca é a mais procurada. Boa aguardente e um belo jogo de roletas. As pessoas gostam de apostar apenas por diversão. Os prêmios não são grande coisa. O tempo é curto até que termine com tudo por aqui".
Esse desalmado só poderia estar brincando. Meu corpo iniciou uma convulsão contida a duras penas.
"Conheceu Leandro, meu irmão? Seu enterro foi há dois dias na porcaria de cemitério que vocês têm aqui".
"Talvez. Mas não recordo tampouco deste nome. O tempo é curto. Temo não conseguir terminar meu trabalho aqui. Moço, conhece nosso rio?".
Trata-se de uma grande brincadeira. Pavorosa é verdade, mas uma troça. Vou retornar de onde cheguei. Para o inferno, Rio Verde de pessoas que continuam a desfilar com rostos sempre desconhecidos. "Não és um bom fisionomista?". A voz do rio novamente. Não posso entoar nem um bom dia.
"Moço, a cidade descansa no leito do rio. O tempo do leito, simultâneo como cada grão de terra que o delineia. Somos a água de sua correnteza, todos nós aqui em Rio Verde. Dessa correnteza que sussurra em nossos ouvidos incansavelmente, somos a água. Corremos pelo leito do rio, às vezes acima, outras abaixo. Talvez procure no instante errado, moço. Devemos saber onde e quando achar o que procuramos. Deve-se saber em que ponto do rio está. Seu leito é grande e corremos por ele. Às vezes acima, outras abaixo da correnteza. Devia conhecer nosso rio, moço".
VII
Mesmo dentro do ônibus continuei ouvindo o ronronar manso da correnteza do Rio Verde. Tinha medo, é verdade. O que fiz aqui, afinal? Enterrei meu irmão? Apaixonei-me? Conheci o terror? O ônibus deslocava-se em direção à estrada. Ao largo da praça principal fui capaz ainda de enxergar as pessoas reunindo-se para a festa que deveria se iniciar em breve. Uma mulher de lindo rosto e cabelos levemente dourados tinha os olhos fitos em minha direção, acompanhando o movimento do ônibus do centro da praça que se iluminara. Um mascarado bebia aguardente, afastando seu disfarce por meros segundos.
Não os reconheci.
Marcelo Santoro