Cavaleiros da Paixão
Desde muito cedo ouvia o pai dizer:
— Quando tiver idade, vai ser soldado, servir a pátria.
Aquilo o deixava desassossegado, principalmente quanto o pai levantava os olhos quixotescos para o céu, e, cachimbando afastava o silêncio que reinava sob o frondoso pé de jequitibá-branco que sombreava fronteiriço a casa onde moravam; com as bravuras astuciosas dos idos tempos da revolução de trinta; encenando tocaias, esgrimas de facão, galope de cavalo e até o estrebuchamento que antecedia as mortes dos cabras.
Não raro perdia-se noite adentro em batalhas turbulentas embalado pela narrativa do pai, que com voz de comandante conduzia-o nas mais frementes narrativas.
Acordava esfalfado e com o corpo surrado pelas aventuras da noite anterior.
Certa vez sua mãe apanhou-o chorando abraçado na madrugada fria. Havia sido violentamente ferido à estocada de baioneta na batalha; e jazia agora estirado sobre um catre sendo desesperadamente amparado por uma enfermeira que lutava em reconduzi-lo a vida.
Ao acordar deparou-se com o rosto pesaroso de sua mãe debruçado sobre o seu. O acalantava. Ele ardia em febre. Levantou-se após três dias de espasmos e com uma grande dor nos ossos.
Contava agora dezesseis anos e a mãe condoída tentava à socapa; prescrever o sonho do marido que queria por toda maneira fazer de seu único filho um cavaleiro destemido. A lágrima de mãe mais uma vez caiu em vão sobre o fato consumado.
Acossado pela insistência onírica do pai; e intimidado com o futuro contato com o mundo bélico. Sofria. Contava os meses riscando a folhinha. Os números corriam céleres do seu alcance. Incrédulo consultava a mãe:
— Já, mãe?
Desolada ela assentia movimentando a cabeça; e com um rosário de lágrima a toldar-lhe o futuro num tom de desesperança.
Tolhido diante do comportamento onírico e impositivo do pai, ele foi se definhando. Emperrou no segundo colegial e seu sorriso bateu em retirada sem esperar o troar da corneta... perdeu-se no vale do nada como os olhos do pai.
Os amigos se afastaram e diziam a socapa:
— Doido. Esta endoidando.
— Dezessete anos!, hora de se preparar para a conscrição.
Exclamou o pai que, lhe raspando o cabelo a moda militar, em seguida, abriu um baú que vigiava a sete trancas e, depositou na frente do filho um par de coturnos, calça de campanha e gandola. E todos os instrumentos necessários para a campanha.
Armou-o com um mosquetão de madeira rudemente lapidado e comandou a ordem unida:
— Um, dois, três, quatro: Volver!
Ia e voltava empertigado; em ombro-arma com seu mosquetão de pau: as pernas marchavam em desfile, os olhos vagos pregados na linha do horizonte, sombreados pelo gorro verde-oliva; a mão direita acompanhava o ritmo das batidas da sola dos coturnos, espalmada.
Já não mais tinha pesadelos, o sorriso repuxava a boca para as orelhas; era um soldado destemido e encarava as batalhas com uma grande convicção:
— Que venham os moinhos de vento! Os soldados inimigos, que venha a razão!
E partiam os dois, sempre ao amanhecer, montados em seus majestosos cavalos de pau em disparada; determinados a defender com honra o seu império venturoso, deixando trás uma senhora que se mortificava de alma e coração na vã expectativa de que ao cair da tarde, depois da ardorosa batalha do dia; na garupa de seus dois cavaleiros da paixão; regresse também a razão.
José Mattos