DESABRIGADA
Um coração transbordando esvaziamento. Um mar de hieróglifos, traduções simultâneas equivocadas. No alento do desconhecido pousa mãos e galhos de arruda. A cabeça encostada no vidro da janela, já não lança ao além o olhar que antes se deliciara na contemplação dos planos de viagem: mundo. Dedicara-se a desenhar na alma mapas dos lugares que, ao toque da adultice, tocaria com os pés... Os mesmos que dançavam, descalços, nas noites de inverno, agradecidos pelo movimento que os aquecia.
A maturidade lhe ofereceu experiências de bandeja, porém não a alertou sobre as cicatrizes que viriam de sobremesa, tampouco sobre as decisões áridas que teria de tomar. Nem mesmo sobre como o desejo poderia ser tão dolorido: nunca sonhou a barriga brilhosa de tão esticada pelos meses que a vida de outro viria a pulsar dentro dela. Ao invés disso, deixou-se subornar pela sedução de deitar-se, amante, sobre o palco. Esquecida que é, não interpretou o desejo, mas o deixou ainda mais eufórico. Não mentiu a verdade e gemeu como que participando de um concerto e, ao invés de aplausos, suplicou ao espectador da sua intimidade que suas mãos deixassem o ar e pousassem entre as coxas dela, entregando-lhe o alívio de ter sido amada com gosto, ao menos uma vez.
Parturiente da inquietação.
Incógnita por opção?
Nem sempre... Já desejou que a desvendassem e por tantas vezes que se entregou ao regalo do cansaço, depois da última negação. Permitiu que a olhassem de dentro para fora, mas não compreenderam ou pensaram ser difícil demais lidar com os dragões que a habitam e, vez ou outra, saem para passear e atear fogo na trivialidade.
De dentro para fora ela se esbalda em dissonâncias. Entre as faltas que coleciona, algumas se mostram tão simples que fere se dar conta de que ninguém se propôs a estancá-las e, talvez, não venha a acontecer. E ela tenha de conviver com a ausência a tricotar ciúme ao alheio na alma da mulher esquecida que se tornará.
Fecha os olhos. Dedos a saborearem a lisura do vidro e vem o arrepio de desassossego. Os cheiros da casa se misturam: incenso, café e perfume. O relógio parece mais apressado do que nunca, mas o tempo é relativo quando parceiro da espera. E impregnada de renascida disposição, ela se permite engravidar de esperança e busca na sua coleção de faltas a que mais lhe emocionaria ser estancada: o abraço a lhe entregar o sono. O descanso. O alento. O abrigo.
Carla Dias