O rio

           Trago a ponta da margem para perto de mim e o que mais vejo são pequenas contas d'água molhando o sorriso do rio. A curva. A ilha. O barco. As pedras. Toda a sua trajetória. O meu sorriso que cheira peixe quando escuta a canção das águas. O rio que sobe.
            O meu rio sobe, não desce. Vai de encontro ao céu. Dá volta pelo mundo e, redondo, acha a outra ponta atada ao mar. Colorido, misturado, profundo, resguardado de imensidões transversais. Com as duas pontas pulo corda, rodopio. Laço o espaço. Molho meu corpo, me enlaço. O rio é enlace do divino com o profano.
            O rio... quanta história que eu conheço. Quantas vidas já tive perto destas corredeiras? Se conto, invento. Se invento, aumento. Na outra margem, do lado de lá, continua a existir uma cobra a me vigiar. A qualquer nado profundo, ela parte em minha direção.
            Nosso encontro não tinha emoção. Já conhecia as suas manhas e ela não me punha mais medo. Sua maior destreza era assobiar com a boca bem molhada e chacoalhar o rabo me jogando pedras.
            A cobra e o rio têm o mesmo delineador. O esboço perfeito de dois lados: um obscuro e o outro amado. O rio que corre para o céu me enleva, mas muitas vezes me destrói.
            O cavalo bebia água na beirinha. Batia as patas da frente espalhando água. É frescor o que ele sentia. Levantava a cabeça, olhava fixo a outra margem. A cobra estava lá a nos vigiar. Ela deixava o animal à vontade. Só comigo é que acendia o cachimbo e fumava. O que ela queria comigo? Devia ser por conta daquele dia maldito em que eu mais Pedro Antonio fomos caçar tatu, e ele colocou fogo numa toca. Era de cobra. Das grandes. Das peçonhentas danadas. Ela pulou lá de dentro e agarrou o moleque pelo braço. Uma gritaria que nem é bom contar. Pedro Antonio sacudia a bicha de um lado para o outro, estalando ela no chão. Mas as entranhas estavam nele. Não havia mais jeito. Veneno puro. Foi ficando roxo. Não deu tempo de fazer nada. Pedro Antonio já era meio doentinho e caiu ali mesmo, na margem do rio. Morto. Foi meu primeiro defunto. Aquele que vi com esses olhos. Fiquei muda, não mexia. Não saía do lugar. Era pequena ainda. Dez anos. Até que as horas foram arreganhando a vida e meu pai veio no meu encalço. Eu estava em choque. Fiquei assim por cinco dias.
            Aos poucos, fui acordando para a vida, mas nunca mais fui aquela que era. Aquela ficou ali, à beira do rio, olhando para a cobra. Mas uma coisa ficou lá com ela: o medo. Não tinha mais medo de cobra, de rio, de defunto, de nada. O medo foi embora com Pedro Antonio. Para sempre. Ou quase sempre. Em mim ficou o olhar dela. O mel adocicado da língua nos lábios. O genuíno veneno da terra que eu aprendi a usar como ninguém. Usar e lavar na beira do rio. Deixando tudo novo e limpo. Qualquer coisa. Qualquer coisa. Sempre dava de ombros para tudo.
            Deve ser isso, então. Por isso qualquer cobra me perseguia. Mas não me encontrava. Só me fumava por dentro. Desgraça. Desgraçada. De tudo que prestava, só o rio eu separava e bebia. O resto eu comia, entalava, arrotava, engolia e me calava.
            No mato cresci e sai só para o estudo em cidade grande, pois minha mãe queria os filhos doutores. Eu fui, mas voltei. Voltei doutora nas letras, nas histórias, nas magias que a vida me assopra de noite quando olho a lua cheia. É na varanda que elas aparecem. Na rede. Como duendes escondidos, me guiando por caminhos esquisitos que sempre vão parar à beira do rio. Sempre. Na boca daquela maldita cobra que toma conta da minha vida.
            Na juventude não ligava, porém agora, na segunda metade da vida, dei para reparar muitas coisas dos sentidos que me eram despercebidas. Os encantamentos da mãe-terra. As coisas estranhas, sem explicações coerentes. As encomendas que trazemos de lá para cá. E também levamos daqui para lá. Os nossos pacotes hermeticamente fechados de instintos primitivos. De segredos não revelados. Do íntimo silêncio da alma.
            Uma madrugada, levantei da rede e fui caminhando em direção ao rio. Um frio arrepiante andava comigo desde o dia anterior. Chegando lá, me sentei numa pedra e fiquei olhando fixo para as águas. O rio cantava desafinado e triste. De repente, lá de dentro saiu o moleque Pedro Antonio. Estava pálido e não havia crescido e envelhecido como eu. Tinha nas mãos uma caixinha de madeira. Veio andando em minha direção e quando chegou bem perto depositou o objeto entre meus pés. Sem nenhuma palavra, voltou para o rio e afundou nele. Abaixei e peguei a caixinha com todo cuidado. Amanhecia, e do outro lado da margem lá estava ela acendendo seu fumo e me olhando. Não liguei para ela. Nem para o fantasma. Apenas abri a caixinha e senti o que nunca mais havia sentido: medo. Pedro Antonio me trouxe ele de volta, da mesma maneira que o levou quando criança. A cobra soltou uma baforada e mergulhou na água, saindo perto dos meus pés, na margem que era minha. Olhou-me fixo e, então, eu gritei. Gritei de pavor, de medo. Até mijei as calças inteiras. Chorei. Chorei. Chorei. Nunca mais tinha me desesperado tanto. Por isso meu coração, às vezes, entupia.
           A cobra apenas sorriu para mim e logo foi embora apagando seu fumo ardente. Contente de ter conseguido, enfim, me render.
           Tudo na gente envelhece. Tudo. Na lida barulhenta da vida a gente não percebe. Vai dar falta de certas coisas quase na hora derradeira. Porque nesta hora não há quem não sinta medo. Pedro Antonio sabia disso e veio devagar, na hora certa, me ajudar a gritar.

Cláudia Villela de Andrade

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