Acordei com ressaca.
Redundância! Começo de novo: acordei. A ressaca tava me matando. Botei uma roupa e fui tomar café na padaria.
Entrei no elevador. Olhei-me no espelho e fiz uma careta. O interfone tocou. Era o porteiro.
- Tá de ressaca de novo, não é? - A voz risonha do Evangelista era como um sino na minha cabeça.
- Você notou? - Disse, olhando para a câmera acima da porta do elevador.
- Notei outra coisa também.
- O quê?
- Tem uma remela no seu olho.
Tentei tirar a remela do olho esquerdo.
- Não, tá no outro olho.
Desci até a garagem para pegar a moto. O interfone tocou.
- Alô?
- É melhor você ir de carro. Tá chovendo. - Alertou-me Eustáquio, o vigia da garagem.
Acenei para ele através das câmeras de segurança.
Peguei o carro. Sai tropeçando com as rodas. Sonolento e enjoado, senti um "flash". Olhei pelo retrovisor e vi que havia sofrido uma multa. Nem sei o motivo, já que não estava correndo. Devo ter avançado algum sinal vermelho.
A proprietária da padaria, Dona Jô, recusou me vender bombas de chocolate com café.
- Li que chocolate em excesso engorda muito gente na sua idade e que café deixa os bêbados ainda mais debilitados.
- Como a senhora sabe a minha idade?
- Vi na sua identidade aquele dia que pagou com cheque.
- E por que diz que sou bêbado?
- Você não escovou os dentes!
Cheguei ao escravitório. Tentei passar pela roleta da entrada.
- Juvenal, libera ai. Sou eu.
- Cadê seu crachá?
- Esqueci.
- Sem crachá não entra.
- Juva, pô, sou eu!
- Eu sei que é você.
- Então libera ai!
- Shhh. Estamos sendo observados. - Ele apontou uma câmera no teto e outra bem na minha frente. Engrossou a voz: - Sem crachá não entra.
Voltei ao carro e peguei o crachá. No elevador, o interfone tocou.
- Alô?
- O Juvenal pediu para te mandar desculpas. - Era o Amaral, o vigia dos elevadores da empresa. - Sabe como é...
- Tudo bem, tudo bem.
- Arruma o cabelo que tá parecendo um ninho de gato.
- E desde quando gato faz ninho? - Perguntei, ajeitando-me no espelho.
- Desde que você o deixou dormir na sua cabeça! - A sonora gargalhada explodiu meu cérebro. Desliguei. Olhei para a câmera e levantei o dedo médio.
O interfone tocou novamente.
- Alô!
- Hahahahaha.
Cheguei à minha sala. Meu colega, Hermes, o cara mais chato do mundo, já estava com cara de cansado.
- Atrasado, hein! - Comentou com inveja.
- Eu tava pesquisando.
- Pesquisando o quê?
- Pesquisando para ver se existe outro cara como você.
- Como eu?
- É. Como você!
- Como assim, como eu?
- Como você! - Ri mentalmente.
Iniciei minhas atividades diárias abrindo o jornal. Nada de diferente no mundo. Meu telefone tocou.
- Alô!
- Já combinamos que você não vai ler jornal na hora do expediente! - Era meu chefe. Procurei alguma câmera nova na minha sala. - Além do mais o senhor está atrasado.
- Pô, chefia, desculpa! Problemas com a esposa.
- Você é solteiro!
- Esse é o problema: falta de esposa!
Tentei seguir as ordens do chefe e encarei o computador. Uma mensagem online pipocou na minha tela. Era o editor.
- Você está novamente olhando para a tela sem fazer nada?
- Quê isso, patrão. Eu tava pensando no trabalho!
- Durante duas horas?
- Trabalho demorado...
Chegou o almoço. Tentei fugir descendo pelas escadas. Quase trombei com a Andréa.
- Querendo fugir novamente?
- Claro que não, querida. Tava subindo pra te chamar para almoçar.
- Mentira! Monitorei o chip do seu crachá. Você estava descendo as escadas e meu andar é acima do seu.
- Querida, não sei o que aconteceu comigo. Vamos?
No restaurante meu cartão de crédito não foi aceito.
- Parece que o senhor não pagou sua última fatura! - Anunciou a plenos pulmões o rapazote do caixa.
- Deixa que eu pago. - Salvou-me Andréa.
Resolvi fazer um xixi. Ao sair do mictório vi a descarga sendo acionada automaticamente. Pelo menos alguma coisa útil nessa vigilância toda.
- O senhor não lavou as mãos! - A voz saiu do nada.
- Deus, é você? - Olhei para cima, mesmo não acreditando em deus.
- Não, eu sou o Geraldo. - Era o responsável pelo banheiro. - O senhor não lavou as mãos.
- E quem é você? Meu pai?
- Hum... qual é o nome da sua mãe? - Perguntou-me o insolente responsável por banheiros.
Novamente fugi da Andréa. Ela ligou para o meu celular. Tentei abafar o som enfiando-o nas calças, mas Andréa foi rápida e escutou o toque.
- Nem adianta botar o celular dentro da calça pois eu mudei a configuração para só tocar no volume mais alto.
Voltei ao escritório e ao chato do Hermes.
- Atrasado, hein!
- Que nada, amigão. Tô é adiantado para amanhã!
O expediente chegou ao fim. Passei pela roleta de saída e o Sandoval me abordou.
- O seu Alberto quer falar com você!
- Sandoval, uma pergunta: todo vigia nesse prédio tem o nome terminando em "al"? Tem Sandoval, Juvenal, Amaral...
- Sei lá. Pergunta pro Edmundo. - Edmundo era o vigia da noite. Nós o chamávamos de Animal.
Procurei o seu Alberto, o administrador do prédio.
- Você está saindo do prédio exatamente no momento que acaba o horário do expediente. - Anunciou ele.
- Sim?
- Descobrimos que você fica escondido na escada.
- Foi só hoje, seu Alberto. Eu tô com muita pressa.
Ele foi para uma televisão com vídeo-cassete e apertou o "play". Era uma colagem de uma câmera escondida na escada. Nela eu aparecia esperando sentado na escada na segunda-feira, fumando um cigarro na terça, tirando uma meleca na quarta e muitos outras posições nos dias seguintes.
- Eram dias difíceis.
- E tem mais: o senhor tem que parar de jogar bolas de papel higiênico molhado no teto do banheiro!
- Bolas de papel higiênico? Eu?
O seu Alberto tirou a fita que estava no vídeo e colocou outra. Era uma câmera escondida no banheiro. De repente, eu apareço. Olho para os lados. Estou sorrindo. Pego um rolo de papel higiênico.
- Tá bom, tá bom. Já entendi. Sem bolas de papel higiênico.
- Nem chiclete nos trincos das portas.
- Nem chiclete!
Sai da sala meio envergonhado. Minhas peraltices fizeram-me sentir mal e bem ao mesmo tempo, que era como eu me sentia a maior parte do tempo mesmo.
Uma luz acendeu no painel do meu carro. Estava me avisando para colocar óleo no motor.
- Até tu, Chicabum, tá me espionando e me dando ordens? - Chicabum era o nome do meu carro.
Cheguei ao bar. Vi seu Juliano dar uma nota de dez pilas para o Baixinho, o garçom.
- Perdi dez paus por sua culpa. - Disse seu Juliano.
- Minha?
- Apostei que hoje você chegaria no horário. Tá sete minutos atrasado.
Bebi o que me cabia. Não comi nada, pois comida engorda.
- Hoje é dia de pagar a conta! - Disse o Baixinho. - Vai dar em dinheiro ou a gente pode debitar na sua conta?
- Debita no Banco do Brasil pois no Bamerindus tô sem grana.
- A gente sabe. É por isso que hoje só pode beber mais uma cerveja.
Voltei para casa tropeçando com as rodas do meu carro.
O interfone tocou. Era o Tonhão, o segurança do prédio.
- Tá bebebê?
- BBB? - Perguntei, assustado.
- Bêbado, bundão branquelo.
É, tô BBB.