Como gostar de alcachofras
Ainda meio mole, ainda meio rijo, abriu seus olhos e viu o sonho sobre o corpo. A natureza te faz piscar para que os olhos não precisem de proteção de tela. Ele não piscou. E a menina ficou ali. Girou no próprio eixo, torceu em movimentos helicoidais. Foi para um lado, para o outro. Para frente e para trás. Subiu até o teto e desceu até bem perto. O sagrado virou pecado e permaneceu divino. Piscou sem querer. Ela sumiu. Continuou com o ritmo, a força e a intensidade vibrando por todo o corpo. Continuou sabendo o cheiro, a cor, os pêlos e o calor. Entendendo as palavras que não saíram dos lábios entreabertos. E de repente não parou de tremer. E sentiu aquela vontade de rir muito. E sentiu aquele medo que se sente quando se está completo por uma metade que sobrevive independente. Chave de segurança. Sem ela nunca mais será aberto. Vão precisar explodi-lo pra saber o que tem dentro. Saiu da cama cantando alguma coisa muito brega. Poderia ser Gilliard? Poderia ser alguma música do Roberto que não fosse plágio. Mas a verdade é que era algo alegre. Lavou o rosto para tirar o suor. Não escovou os dentes para continuar com o gosto do beijo. Tomou café e escolheu um pêssego. Não entendeu como aquele Marlboro com marcas de batom apareceu no cinzeiro. Passou o resto do dia fazendo amor. No metrô, na fábrica. Transou com ela na frente dos amigos, na hora do almoço. – O que? Sim, sim. A alcachofra está uma delícia.- E ele sempre detestou o gosto das alcachofras.
Marcelo Niederauer