NOSSO PEDAÇO DE MUNDO
Nos primeiros dias, sempre que o telefone tocava, ela de uma cidade e eu de outra, esboçamos um movimento, um gesto de quem vai atender. Ficamos rápidos, esperando a campainha tocar, silenciar, tocar outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma anunciação, um gesto agudo nos apontando. Era preciso que ficássemos imóvel, talvez respirando com mais cuidado, até que levássemos a mão no aparelho. Então, tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido, mais uma vez, os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população mesquinha e frívola da cidade imensa, que transitava lá fora, nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes, o ruído de um carro estacionando em frente de casa. Tínhamos o ouvido apurado, esperávamos quietos, os tocares do fone. Um segundo, dois – e a campainha tocava alto, rascante.
Se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho. O mundo ia, pouco a pouco, desistindo de nós; pouca gente batia palma no portão, quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora, a vida era nós dois, apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
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No sexto dia, sentimos que tudo aspirava a nosso favor. Que importa a cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares de edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade , que durante uns dois ou três dias, parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar. Alguém batia na porta, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante.
Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de sensação única e boa, como um vinho que tonteia, como se meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o odor de sua pele tivesse entrado na minha. Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde se filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão descorados, num tom acizentado”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado. Ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo não os via assim, em plena luz), um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança de que não terminasse aqueles momentos de felicidade. De que ficássemos em nosso exílio voluntário, no quarto ornamentado por vasinhos, com nossas sementinhas eternizadas para sempre.
Rubens Shirassu Jr.