Assassinato no 402

Toc toc toc. O relógio não fazia tic. Martelava. O homem andava, pra lá e pra cá. O sol nascia, mas o dia já quente, o suor escorria pela cabeça careca, uma gota na ponta do nariz. A mulher não chegava. “Ela não perde por esperar”. Era hoje. Foi hoje que ele teve certeza. E tendo certeza, ia fazê-lo. “Hoje ela não dorme em casa”.
Toc. Trancou a porta. “Ela vai ter que bater”. O homem sabia que ela nunca usava a campainha.
Espremia com ansiedades as mãos grossas. Estalou os dedos.“Como ela pôde fazer isso comigo?”. Abriu todas as janelas. A luz da manhã encheu o quarto. Misturou-se com o cheiro do café passando. Toc. Pra lá. Toc. Pra cá. Toc. Ligou a TV.
Jornal esportivo. Seu time tinha jogo importante. A melhor campanha, invicto. “se quiser tenho até os ingressos”. Orgulhou-se do cinismo. A mulher tinha comprado dois ingressos. Ele os encontrou na gaveta, ou dentro de um livro. O homem tinha a certeza de que não eram para ele. “Por que ela não me mostrou até agora?”. Ele sabia. E tinha todo o resto. Alguns jogadores. Margarina para a família. Carros voando. Desligou a TV.
Foi à cozinha. Bebeu de um gole a xicára de café fervendo. Uma sensação horrorosa na língua. Àgua gelada. O estômago sucumbiu. Já eram dois dias sem comer, talvez nem tivesse dormido. Vomitou pela cozinha. Agonia. O café o deixava ansioso, sempre. “Esse vômito”. Nojo. Espreme as mãos.
O homem mal podia esperar para o anúncio. A mulher estava expulsa daquela casa. Da sua vida. Ninguém no mundo o faria de palhaço. Segurou, com ódio, os dois ingressos. Olhou-os. Molhados pelo suor. Examinou, muita cautela, ambos. Decidiu-se por um. Tic. Riscou um fósforo. Ateou fogo ao ingresso escolhido com parcimônia e com todos os critérios do mundo: textura do papel, número da cadeira, quantidade de suor. “Esse é o do amante.” Queima a mão. Não percebe.
Toc toc toc. As batidas à porta. Ela chegou. O homem tira a aliança. Guarda no faqueiro da cozinha. Corre à sala. Abre a porta. Ela entra no apartamento. Sorrindo. Surpreende-se. As malas estão a postos e ele pede, exige, as chaves. “Não vai mais precisar”.
No mesmo dia, à tarde. Geninho corre. Toc. Vinte e duas mil, trezentas e vinte e sete pessoas comemoram. Gol do time. O homem parece ser a única pessoa no estádio que não festeja. Está concentrado, pensando a que ponto chegara e as escolhas que a vida proporcionara. “Queimei o errado.” Ao seu lado a amante estranha o comportamento. Nunca tinha sido levada ao estádio.

Gustavo Villas Boas

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