Apoteose
E quando Deus criou a humanidade, tomou-a por sua obra mais completa. Chamou então um de seus anjos e deu ao ser humano seu maior presente.
Disse o anjo: “Aqui estou, Senhor. Mandastes me chamar?”
Deus respondeu: “Sim. Tenho para ti uma missão longa e difícil.”
O anjo perguntou: “Qual é essa missão, Mestre?”
Deus, então, antes de contar ao anjo qual seria a missão, alertou-o das dificuldades que enfrentaria se a aceitasse: “Essa missão será longa, mesmo para ti, que és eterno, essa missão parecerá interminável”
“Senhor, sabeis o quanto Vos amo” disse o anjo “e que tudo farei para atender à Vossa vontade.”
Deus ainda insistiu: “Mesmo que nessa missão tenhas de ficar afastado de Mim?”
O anjo demonstrou receio, demorando a responder, mas enfim assentiu: “Mesmo assim, Senhor, se essa for a Vossa vontade e se isso Vos agradar.”
“Mesmo que tua missão seja ingrata e incompreendida antes que chegue ao seu término?”
“O que me importa é fazer Vossa vontade, meu Amo. E em Vossa infinita bondade, sei que terei o Vosso reconhecimento, e isso me basta.”
“Terás mais que isso se a cumprires a contento. Nesta missão não terás descanso. Precisarás estar em permanente atividade e só no final serás recompensado. Quando tua missão acabar terás teu lugar de honra a meu lado e serás reconhecido por todos os seres da criação, inclusive por teus iguais, como o mais importante instrumento de minha obra.”
Deus fez uma pausa para que o anjo pudesse assimilar o que Ele lhe dissera e continuou: “Não tens a obrigação de aceitar essa missão, porque sei que sofrerás estando afastado de Mim. Mas escolhi-te primeiro dentre todos porque sei quão grande é tua devoção por Mim. E é preciso grande motivação para ser capaz de cumprir essa função a contento. Uma vez aceita, não poderás voltar atrás.”
E Deus fez nova pausa. O anjo sabia que cada palavra proferida pelo Criador era repleta de significados e fazia-se mister entendê-las em toda sua plenitude. Deus enfatizara muito a importância e dificuldade da missão e embora o anjo já tivesse cumprido missões difíceis e longas antes, nunca fora tão alertado sobre a dificuldade e a longevidade da tarefa.
O anjo aventou duas possibilidades: as outras incumbências recebidas talvez não fossem tão importantes quanto aquela e uma certa dose de falha era aceitável, ou aos olhos de Deus as outras tarefas eram simples e curtas.
O anjo ficou temeroso ao aventar a segunda hipótese, mas pensou na grandeza do seu amor por Deus. Seria um longo tempo de sofrimento, afastado do Criador de todas as coisas, seu Amo e Senhor, mas depois de terminada, sua maior recompensa seria reencontrar-se com Ele.
Pensando dessa forma, o anjo aceitou a missão com todas as suas implicações. Deus então lhe revelou a tarefa: “Lúcifer, serás então meu instrumento para levar à humanidade o livre-arbítrio, sem o qual não há aprendizado e não há mérito. Preciso dar ao homem a possibilidade de escolha. É preciso que haja dois caminhos a seguir. Um deles fácil e curto, mas que o afastará de Mim e o conduzirá a ti. O outro caminho será difícil e penoso, mas trará o homem mais rapidamente ao Meu reino.”
Deus fez novamente uma longa pausa enquanto o anjo percebia a grandeza do que seu Amo lhe pedia. Mesmo pensando estar preparado, Deus ainda conseguiu surpreendê-lo:
“Tentarás o homem até o final dos tempos, o dia do julgamento. E esse dia será aquele em que o homem compreender a grandeza e o sacrifício de tua missão. Se o homem for capaz de perdoar-te, então ele estará na plenitude de seu desenvolvimento espiritual e poderá retornar ao Meu reino de amor. Tu voltarás então ao Meu convívio e serás reconhecido como meu mais importante instrumento na Criação”
O anjo emudeceu. Por graça de Deus ele recebeu poderes para possibilitar-lhe o cumprimento da missão. Começou a sentir inveja do homem. Lúcifer teria de fazer um enorme sacrifício para receber sua recompensa, enquanto o homem já nascia recompensado: era a criatura preferida do Criador e seu destino, por mais que demorasse, seria sempre chegar ao reino celestial — posição que a ele estava sendo negada. Em seguida à Inveja veio o Ódio. E Lúcifer começou a planejar formas de manter o homem afastado de Deus por tanto tempo quanto ele próprio ficaria.
— Vai-te, meu querido — disse Deus — e faz um bom trabalho com os poderes que te dei para cumprir teu trabalho.
E junto à Inveja e ao Ódio, Lúcifer levou também outros pecados consigo, além de beleza para se tornar sedutor e onipresença para poder chegar a todos os homens.
Antes de sair, o anjo despejou sobre o Criador palavras amargas. Chamou-O de cruel e de injusto por fazer aquilo ao Seu mais fiel servo. Saiu gritando impropérios e pisando duro. Num gesto de indignação arrancou das asas as penas diante dos outros anjos.
Gabriel tentou trazer-lhe a razão: “Que fazes, Lúcifer? Tu que és o primeiro anjo não deverias falar assim com Deus. Seja o que for que Ele tenha feito, deves tê-Lo compreendido mal para achar que Ele não é justo.”
“Cala-te Gabriel. Dizes que sou o primeiro anjo, mas não estou sendo tratado como tal. Saibas que Deus me privou de Sua companhia e em troca devo ajudar aquelas criaturinhas que Ele tanto ama a se aproximarem Dele.”
E gritou para o alto, de onde Deus a tudo assistia: “Pois sabei, Senhor, que tudo farei para prolongar o sofrimento do homem a quem tudo deste. Farei com que nunca cheguem até Ti.”
E com as asas nuas despencou do Céu para as profundezas da Terra a fim de conduzir o homem pelo caminho errado.
* * *
Denominavam-se Apoteóticos, pois acreditavam ter o conhecimento de como atingir a purificação e a salvação completa da humanidade do Pecado Original, que levaria o homem à Apoteose, o fim da obra de Deus. Baseavam sua doutrina nos Apócrifos, os textos banidos da Bíblia pela Igreja. Depois da descoberta dos manuscritos do Mar Morto, suas teorias foram enriquecidas pelos detalhes até então ocultados pelo clero. Eram textos que costuravam tanto o Antigo como o Novo Testamentos, preenchendo as lacunas, explicando e enriquecendo o texto bíblico. O homem perdera mais de dois mil anos interpretando os textos bíblicos e tentando entender os desígnios da criação. Agora o Livro Sagrado estava praticamente completo e trazia em si toda a verdade sobre a criação da humanidade.
Samuel era um dos maiores estudiosos da Apoteose. Conhecia a fundo a doutrina. Era arqueólogo e tinha traduzido para o inglês muitos dos textos que compunham a Nova Sagrada Escritura — NSE. Estava em uma das várias escavações que conduzia nas proximidades de Jerusalém onde buscava encontrar aquela que considerava a última peça para a compreensão total do destino da humanidade. Segundo seus estudos, na cronologia da NSE, havia profecias de eventos posteriores ao Apocalipse. Era como se os livros contassem a história do universo desde a criação até a conclusão, evento que chamavam de Apoteose, daí o nome da seita. Samuel acreditava que algum dia o homem encontraria o livro definitivo: aquele que os levaria direto a Deus, ao fim da grandiosa Obra Divina.
* * *
Caminhava o homem pelo Éden, onde nada lhe faltava. Alimentos, saúde, beleza e paz, tudo havia sido criado para ele. Um dia avistou uma árvore nova. Ela possuía frutos vermelhos e lustrosos, mas como não estava com fome, deixou para comê-los depois. Foi chamar a mulher para lhe mostrar o novo presente que receberam de Deus.
Deus, que de tudo sabe, falou ao homem: “Adão, tu não deves comer daquele fruto. Aquela árvore não é para ti e não foi colocada ali por Mim. Se me desobedeceres tudo lhe será tomado e terás que lutar pela tua sobrevivência. Não terás mais abundância nem paz. Terás de trabalhar por aquilo que até hoje tens nas mãos. Vai-te e avisa Eva do que te disse.
Adão ouviu aquilo e estranhou que lhe fosse proibido comer de um fruto tão bonito. Mas se Deus assim o queria, só lhe cabia alertar sua companheira.
Adão contou a Eva sobre o fruto proibido e Eva concordou em não comer dele. Mas o Éden era grande e por muito tempo não viram de novo a árvore dos frutos vermelhos.
Certa noite, Eva acordou com fome e foi procurar algo para comer. Buscava frutas rasteiras perto do lago quando se deparou com um animal que nunca tinha visto.
Eva perguntou: “Olá. Que tipo de animal és tu?”
O animal respondeu “Sou uma serpente.”
“E serves para comer? Estou com fome!”
“Não, minha carne não é saborosa, mas posso te mostrar onde achar frutas boas para saciar-te.”
“Diz-me, então.”
E Lúcifer, disfarçado em serpente, conduziu Eva até a árvore proibida. Ao ver os frutos, Eva se lembrou do que havia lhe dito Adão e recusou-se a comê-los.
A serpente, então, falou: “Vamos, Eva, come! Tu estás com fome e ninguém vai saber que você comeu.”
Eva resistiu: “Não! Se Deus nos proibiu de comê-los. Devem ser venenosos.”
“Não são. Posso provar-te.”
A serpente, então, subiu na árvore, apanhou um dos frutos e comeu. A astuciosa serpente repetia o quanto era delicioso aquele fruto. No lugar de onde ela retirara o fruto, imediatamente surgiu outro.
E a serpente tentou Eva: “Vê, mulher! De onde se retira um fruto logo aparece outro. Deus nem ficará sabendo se tu comeres um. Prova! É bom.”
Eva sucumbiu à tentação da serpente e esticou a mão para apanhar um dos frutos. Colheu-o e em seu lugar apareceu outro igual. Deu uma dentada na fruta e gostou do sabor. Comeu-a todinha e saciou sua fome.
A serpente continuou:“Leva uma para seu companheiro.”
Eva apanhou outra fruta e em seu lugar surgiu uma igual. Levou-a para Adão e lhe ofereceu.
Adão perguntou: “Que fruta é esta?”
Eva respondeu: “Não importa que fruta é. Prova, é boa.”
Adão retrucou: “Não, Deus nos proibiu de comer dela. Essa é a fruta proibida. Deus disse que sofreríamos grandes males se dela provássemos.”
“Mentira! Eu comi e não me aconteceu nada.”
“Mas Deus ficará sabendo.”
“Não saberá. Ao colher o fruto nasce outro em seu lugar. Ele não dará pela falta.”
E Adão, convencido, provou do fruto.
* * *
Não era de se estranhar que Samuel ficasse muito excitado ao receber a notícia de que haviam encontrado uma nova câmara no sítio arqueológico número quatro. Correu para lá e foi logo ter com o capataz da escavação. Quando o homem viu seu jipe se aproximando, correu ao seu encontro:
— Samuel! — gritou o capataz — Samuel! Ficarás contente, Samuel. Ao que tudo indica a parede central da casa do pai de Pedro guarda uma câmara. As medições indicam que a espessura da parede é da largura de um homem. É como se houvesse um corredor ali, sem entrada nem saída.
— E como isso não foi visto antes? — perguntou Samuel — Essa casa já foi escavada há quase um ano e nunca ninguém se deu conta disso?
— A parede separa dois cômodos muito grandes, Samu-el. Dessa forma é quase impossível perceber que a parede é mais grossa que o normal. Só foi descoberta agora por causa das medições que estão sendo feitas para o museu. Se o desenhista não fosse muito detalhista, talvez ainda não a tivéssemos descoberto. O rapaz é jovem e quis fazer os desenhos todos no computador. Trouxe um portátil para as escavações e começou a pedir medidas de cada parede. Os operários já estavam até ficando irritados com ele por atrapalhar o andamento das escavações.
— Sei! Mas como você sabe ele é um funcionário do museu, e o museu patrocina as escavações... bom, você entendeu, não é? É nossa obrigação colaborar com o trabalho dele por mais que ele pareça estar nos atrapalhando.
O capataz assentiu com a cabeça.
— Onde está ele agora? — perguntou o arqueólogo.
— Ele não sai do lado da parede. Disse que quer estar presente quando descobrirem como abri-la.
— Vamos até lá!
Lá chegando, Samuel encontrou o rapaz à porta da casa, com seu computador, ainda desenhando a planta da escavação para o museu. Quando ele o viu chegar fechou o computador e foi recebê-lo.
— O senhor deve ser Samuel. Eu sou Lucas — apresentou-se estendendo a mão, mas sem esboçar sorriso.
Samuel apertou-lhe a mão sorrindo, afinal ele havia ajudado a descobrir uma câmara que ocultava sabe-se lá que tesouros.
— Meu capataz me disse que foi você quem descobriu a existência da câmara. Meus parabéns!
— Não fiz nada além de minhas obrigações. Estou ansioso para que o senhor a abra. Como pretende fazê-lo?
— Não nos apressemos. Ainda nem sabemos se de fato há uma câmara aí. Pode ser só uma parede grossa com alguma finalidade que ainda desconhecemos.
— Já comparei com outras casas por aqui e consultei colegas de outras escavações. Esse tipo de construção não foi encontrado em nenhum outro lugar. Nem há casas com cômodos tão grandes em nenhuma cidade do mesmo período. Havia aqui a clara intenção de ocultar essa parede de olhos destreinados.
Samuel olhava espantado para o rapaz. Ele era pró-ativo, oferecia serviços além de suas obrigações, mas alguma coisa nele o incomodava. Mas o jovem não parou naquilo. Dirigiu-se até o centro da parede e chamou:
— Venha até aqui ver isso, senhor.
Lucas bateu com o nó dos dedos e a parede emitiu um som oco e ressonante.
* * *
No princípio Lúcifer criou para os homens um local de sofrimentos e dores. Ele descontava nas almas dos homens o ódio que nutria pelo Criador. Mas percebeu que essa estratégia era falha. As almas sofredoras rapidamente se arrependiam e lhes eram tomadas. Então ele passou a tratar o homem de outra forma. Para mantê-lo afastado de Deus era preciso seduzi-lo, e não castigá-lo. E o diabo aprendeu a arte do cinismo.
* * *
Samuel se rendeu às evidências. Explicou que começaria as escavações pela lateral para evitar quebrar muito a parede. Marcou na parede do fundo, com a ajuda da planta desenhada no computador de Lucas, onde seria o centro do corredor oculto e designou dois funcionários para abrir a parede por ali. As pedras demoraram para começar a cair. A parede parecia bem mais sólida do que Samuel estava acostumado a ver. Analisou a primeira pedra a cair e viu que era de uma rocha inexistente na região. Depois analisaria com mais cuidado sua origem. Naquele momento só pensava no que poderia haver por trás da parede sendo derrubada. A tarde toda se passou e não haviam conseguido abrir passagem para sequer caber um homem. Qualquer que fosse o motivo, aquela parede fora construída para não ser facilmente violada.
Lucas parara de desenhar e a tudo acompanhava. Insistia que a parede deveria ser derrubada diretamente no ponto onde o som era oco, mas Samuel resolveu persistir em abri-la pelo lado. No terceiro ele acabou se entregando e concordou em seguir o conselho de Lucas.
Orientou os funcionários a pararem a escavação onde estavam e os levou para quebrar a parede no ponto indicado pelo desenhista. Ainda assim, não foi um serviço fácil. Demorou quase um dia inteiro para aparecer o oco na parede. A partir desse ponto as marretadas passaram a ser mais cuidadosas e o serviço ficou mais lento ainda.
Enquanto prosseguiam as marretadas, Samuel ficou sabendo através de um funcionário de sua confiança que Lucas andava criticando Samuel pelas costas. Não quis acreditar a princípio, mas acabou descobrindo mais tarde que ele pertencia à Renovação Ortodoxa, uma seita cuja doutrina conflitava diretamente com a dos apoteóticos. Eles diziam que os apoteóticos eram adoradores do diabo e, conseqüentemente, rejeitavam todos os novos livros da NSE.
De fato os apoteóticos foram confundidos com as malfadadas seitas satânicas por algum tempo, mas logo difundiram seu dogma de que Lúcifer era um anjo e sua missão era penosa. O homem deveria amá-lo e perdoá-lo pelo seu supremo sacrifício, mas nunca segui-lo. Eram de fato seguidores do Cristo e aceitavam ensinamentos de muitos outros líderes espirituais. Ficaram populares por conhecerem a fundo diversas religiões e serem capazes de discutir diversas doutrinas. Conquistaram o mundo pela tolerância e pelo conhecimento.
Samuel, sabendo disso, passou a evitar Lucas. Entendeu que o moço era dissimulado e não sabia ainda quais eram suas intenções. Os apoteóticos pregavam a paz, mas quando se tratava de renovadores ortodoxos, era preciso encará-los como inimigos.
Depois de duas semanas, encontraram na parede um pequeno baú. Era feito de uma madeira muito resistente e possuía reforços de ferro e uma tranca. Samuel percebeu logo que o artefato não era da região. Era uma tecnologia muito avançada para aquele povo. Provavelmente tinha sido importado do Egito. Houvera ali um cuidado muito grande para proteger seu conteúdo.
Como não tivesse a chave, ordenou aos operários que continuassem abrindo a parede com muito cuidado. Mas dado o esmero em proteger seu conteúdo, não acreditava que a encontraria facilmente. Provavelmente essa chave estava bem longe dali ou até nem existisse mais.
Levou o baú para sua barraca e tentou abri-lo com um arame. Vira um vez um amigo abrir cadeados com uma lâmina recortada de forma sinuosa. Se a técnica funcionava com cadeados modernos, talvez funcionasse com uma tecnologia mais antiga.
O sítio arqueológico tinha uma marcenaria. Era usada para fabricar e consertar ferramentas, fabricar caixotes para transportar peças delicadas e produzir bancos, cadeiras, mesas, andaimes e outros mobiliários necessários nas escavações.
Foi até lá para ver se achava alguma ferramenta que o ajudasse a abrir o baú, mas teve o descuido de deixá-lo em sua barraca. Quando retornou encontrou Lucas saindo de sua barraca com o baú na mão. O moço, pego em flagrante, tentou se explicar dizendo que achava ter descoberto um jeito de abrir a caixa. Percebeu que a explicação não convencera e entregou a peça a Samuel.
Samuel entrou em sua barraca e tentou abrir o fecho com uma gazua que fabricara na marcenaria. Sem muita dificuldade, conseguiu abri-lo, revelando o que havia de tão secreto no interior do diminuto baú.
Era um pergaminho. Pela forma era mais um capítulo para ser incorporado à NSE. Embora não tivesse ali com ele os livros para traduzir o texto em aramaico, conseguiu ao menos identificar o título, pois era uma palavra que havia muito já conhecia. Podia reconhecê-la imediatamente e ao compreender a grandeza do que tinha em mãos, quase caiu do banquinho. Suas pernas tremiam. Estava exultante. Não cabia em si. Tinha em mãos um pedaço de couro de mais de dois mil anos em cujo cabeçalho se lia em letras capitais: “APOTEOSE”.
Nisso Lucas entrou na barraca, arrancou o pergaminho de sua mão e fugiu com ele. Ainda atônito, Samuel demorou a reagir. Lucas já estava longe mas o arqueólogo gritou que o segurassem. Alguns operários correram atrás do ladrão, mas antes que algum deles o alcançasse, tirou um isqueiro do bolso e tentou queimar o pergaminho.
Tentou, mas não conseguiu, porque o pergaminho não se queimou. A chama nem sequer chamuscou o couro. Lucas pegou então uma faca e tentou cortá-lo, também sem sucesso. A relíquia parecia indestrutível. Finalmente um dos funcionários conseguiu pular sobre o traidor e impedir sua fuga.
Samuel recuperou o manuscrito e Lucas foi preso.
Mais tarde, já no hotel, o cientista traduzia a escritura. A descoberta de uma vida se descortinava em sua frente. Ansioso, mal conseguia procurar as palavras nos diversos livros e dicionários abertos sobre a cama. Apesar de ser um texto curto, custou-lhe quase a noite inteira traduzi-lo.
* * *
E Deus concluiu sua obra e Lúcifer retomou seu lugar ao lado Dele. Como filho mais velho do Criador, o anjo compreendeu que sua missão era conhecer os sentimentos inferiores que acometiam as almas humanas para que dessa forma pudesse controlá-las. Os anjos eram a criação suprema de Deus e o homem tinha por destino servi-los. Mas para tal era preciso conhecer suas fraquezas e Lúcifer foi o escolhido para aprendê-las a fim de dirigir as almas imortais dos homens que trabalhariam a serviço dos anjos por toda a eternidade.
* * *
Samuel não podia acreditar no que lia. Tinha em suas mãos um tesouro inestimável, mas a que preço! O conteúdo de seu achado jogava todas as suas crenças pelo ralo. Impossível descrever a mixórdia de sentimentos que o assomavam. Ódio, medo, angústia, desprezo! O Pai amoroso se tornara um pecuarista. Sentiu-se o gado da divindade. Lúcifer era o capataz da imensa fazenda na Terra. Compreendia então por que tanto esmero em ocultar aquele documento.
Enfim, após refletir, chegou à conclusão de que a humanidade não devia ser poupada da verdade, por mais sofrida. Já que seria escravo dos anjos pela eternidade, então o melhor era aproveitar para se divertir enquanto era vivo. E pensar que a tantos prazeres tinha renunciado até então!
No dia seguinte, viu no jornal a notícia do suicídio de Lucas na prisão. Se ele soubesse...
* * *
A dúvida dos anjos ecoava em uníssono no céu. Perguntavam ao Criador por que sua obra, aparentemente em vias de se completar, retrocedera tanto.
Deus disse apenas: “Não subestimais a astúcia de vosso irmão Lúcifer, que numa única página fez o homem voltar vários capítulos no livro de sua história.”
Rafael Bertozzo Duarte