E O MEDO SE FEZ...
Ela vivia numa casa alegre, ampla, dois andares, pintada de branca, janelas sempre abertas para a vida, o vento e a complacência com as travessuras naturais de criança esperta e inteligente.
O pai podia ser caladão e austero, mas a mãe era cheia de energia, força e risos. Desarmava a rigidez do marido com brincadeiras bem-humoradas e
muitas vezes irônicas. A irmã, mais velha, estava sempre perdida em devaneios e sonhos. Pouco prestava atenção a ela, a menorzinha. O irmão... bem, o irmão era um misto de herói e amigo. Uns doze ou treze anos separavam os dois. Ele tentava mostrar-se sério, um segundo pai, quando ela aprontava suas confusões infantis, mas tacitamente passava seu apoio através da máscara de bravo.
E Lucinha ia vivendo, livre e solta, dando vazão a seu espírito de aventura, satisfazendo sua curiosidade de conhecer o mundo, que parecia divertido e surpreendente aos seus olhos de criança de quatro anos (se tanto!). Tudo que acontecesse de diferente na cidadezinha pacata a colocava em movimento para descobrir e analisar a novidade. Chegava um circo, não lhe bastava assistir, de olhos bem abertos, ao desfile de propaganda para o espetáculo da noite. Dava um jeito, esgueirava-se sem ninguém notar e ia ver de perto os animais, os artistas, a armação do grande toldo da alegria. Vinham os ciganos, que costumavam armar suas barracas de mistério bem perto de sua casa, e Maria Lúcia passava parte do dia dentro delas. Olhava, sem falar nada, observando com atenção cada detalhe daquela vida fascinante. Parecia julgar-se invisível: entrava e saía dos lugares, parava para ver bem e, às vezes, ficava horas num canto qualquer, de um quarto, de uma tenda, de um camarim, olhando e olhando.
Quando não havia as barracas de ciganos ou de artistas, seu lugar preferido para as incursões de exploradora de novos ambientes era a casa vizinha à sua, onde moravam um velho e suas duas filhas solteironas (e metódicas!). O que a fascinava no espaço era a grande diferença em relação ao seu. Sua casa era nova, os móveis modernos, as janelas largas; a dos vizinhos era antiga, bem antiga, os móveis pareciam ter atravessado os séculos antes de ir parar lá na casinha acanhada e escura. Também era interessante observar aqueles seres quase tão antigos quanto a mobília. Não que as "moças" fossem avançadas em idade, mas tinham hábitos e comportamento que cheiravam a mofo. Mesmo assim, Lúcia gostava de ir lá e... observar. Ficava vendo seu Ciano eternamente sentado na cadeira de balanço, enquanto Salete (a mais esquisita!) estava sempre a executar alguma tarefa doméstica e Nélia (a mais simpática!) fazia também algo aqui e ali, embora parecesse nunca fazer nada. Maria Lúcia sentia-se bem recebida no lugar, parecia gostarem dela, mesmo na falta de efusão e no acolhimento tristonho. Ali, ela se acostumara a bater palmas antes de entrar, gritando os nomes (seu Ciano!.. Nélia!... Salete!...), como via sua mãe fazer nas vezes em que ia visitá-los.
Maria Lúcia achava estranho que na casa de seu Ciano as pessoas vivessem trabalhando. Havia tão pouco a fazer, era tudo muito simples, sem luxo, mas as duas mulheres sempre ocupadas (e tristes!). Salete varria o quintal umas duas ou três vezes ao dia: o chão de terra ficava sempre livre das folhas. Aliás, o quintal parecia mais limpo que a casa. Por que será que nunca cimentaram o chão? Varrer e varrer, desnecessário. Mas dava pena ver a Salete varrendo, e varrendo, e varrendo, e... Houve um dia que Lucinha chegou, bateu palmas (que falta fazia uma campainha como a da sua casa!), gritou e gritou: seu Ciano!... Salete!... Nélia!... Nenhuma resposta. Talvez fosse muito cedo e estivessem dormindo. Talvez tivessem saído. Saído? Jamais. Ninguém saía daquele lugar. Estavam sempre ali.
Lucinha resolveu entrar assim mesmo. Foi andando ao redor do casebre e observando. Janelas fechadas, fechadíssimas, portas fechadas, e o mais intrigante! a porta da cozinha para o terreiro também fechada. Essa era a única que estava sempre aberta. Nenhum barulho. Nenhum movimento. Nada. Teria acontecido alguma coisa?!
A menina continuou sua andança especulativa pela área externa. Foi olhando, olhando, observando, observando e de repente viu a vassoura encostada num canto de parede. A vassoura! Não conseguia acreditar... Salete guardava com tanto cuidado o objeto e agora estava ele bem à mão, completamente disponível. Uma única vez Maria Lúcia conseguira "dar uma varridinha", segurar aquele cabo tosco por alguns segundos, sob o olhar vigilante e atento de Salete. Lucinha achara um paraíso aquele efêmero movimento adulto de empunhar uma vassoura e varrer um chão de verdade, um chão de terra. Mais importante ainda lhe parecera o ato pelo modo solene como Salete lhe permitira a honra.
E agora a vassoura estava ali. Coitada da Salete se cansa tanto para varrer! E varre tanto! Se eu pegasse esta vassoura, varresse tudo, deixasse o quintal bem limpinho, ela ia gostar muito. Ia ficar alegre. Seria capaz de alegria? Ah! ia ficar alegre sim.
E a menininha, excitada e feliz, pega a vassoura. Fascinante! Começa a varrer, deslumbrada com a própria façanha de conseguir arrastar algumas folhas secas. Varre, varre, e sente que não está limpando tanto chão como pensara que pudesse fazer, como vira Salete fazer. Bem cansativo. A brincadeira já estava perdendo a graça. Mas não é brincadeira... vou ajudar ela. Coitada, sempre tão triste. Quem sabe é de varrer e varrer? A menina continua, pensa agora que está sendo boazinha, que Salete vai elogiar, vai contar a todos o grande feito...
Mas Lucinha não tem muito tempo para divagações... A porta da cozinha se abre repentinamente e aparece uma cara fechada, fechadíssima. Maria Lúcia nunca havia visto Salete com aquela cara, mas o que faz a garotinha pela primeira vez na vida sentir um frio de medo percorrendo o corpo até aprofundar-se nas entranhas é o grito rouco e apavorante da solteirona:
Menina, que é isso? Largue essa vassoura. Já! Você está estragando ela!
Petrificada pelo sentimento desconhecido que dá frio na barriga, a garotinha solta com dificuldade o maldito cabo, antes objeto do desejo e agora cabo das tormentas.
Salete, escancarando uma rabugice solteira, antes nunca vista, não se dá por satisfeita e continua esbravejando:
Você estragou minha vassoura de varrer a casa, menina! Isso não é para varrer quintal. Olha só o que fez: está toda suja de terra.
Apavorada com o desastre, Lucinha olha (agora já em pânico!) a terra misturada às cerdas duras da vassoura. Julga que jamais a terra sairá dali. Sente-se responsável por uma destruição irreparável. Não sabe o que fazer, não sabe o que pensar, não sabe que frio é aquele que fica voltando dentro da barriga a cada comentário de Salete. Lucinha se julga a pior menina que Deus pôs no mundo. Culpada! Culpada! Nem sabia que havia vassoura de varrer casa e vassoura de varrer terreiro. Culpada! Nem sabia que vassoura não podia ser lavada, que a terra ficava para sempre nela.
O frio na barriga, aquele sentimento antes desconhecido, a incapacidade de ficar ou de ir, tudo novo para a menininha. Tristemente novo.
Com muita dificuldade, Maria Lúcia consegue tomar a única atitude possível: fugir. Ela foge. Foge para sua própria casa. E encontra janelas e portas abertas, claridade, risos, som, movimento.
Mas a menina, que agora está livre do friozinho esquisito, não se liberta de uma outra sensação estranha: a de estar em perigo. Algo tão grave, como o que fizera, deveria trazer conseqüências terríveis.
Por alguns dias, Maria Lúcia continuou acuada por dentro, esperando a punição que viria. De onde? Isso ela não sabia. Mas não tinha coragem de voltar à casa dos vizinhos. Nem de passar por perto.
Esperou mais e nada aconteceu. Foi voltando aos seus movimentos de sempre. Tentou esquecer seu ato imperdoável, irreparável. O tempo foi cobrindo de poeira o episódio. Ela até voltou a ir à casa dos vizinhos.
No entanto, em Maria Lúcia ficou uma terra daninha misturada com cerdas de vassoura.
Márcia Carrano