Bela Despedida
Cidade Maravilhosa. És cheia de encantos mil. Corcovado, Redentor e Jóquei Club. Ipanema, Leblon e a Copacabana. Pai, mãe e irmãos. Namoro, casamento e divórcio. Escola, colégio e faculdade. Amor, trabalho e diversão. Sempre tríades. Os maçons estão certos, pois me parece que as coisas vêem sempre em trios. E o Rio não poderia ser diferente.
Nasci, cresci e morri...
Sim sou carioca. Nasci na Guanabara. Em 1949 o Rio era a Capital Federal. Com seus palácios, autoridades e puxa-sacos. Acredito que o nosso jeito malandro seja devido às facilidades de ser morador de tal metrópole. Malandros que vivem às custas do erário público. Mais de fato que de direito. Temos lá nosso charme...
Meu pai, oficial do Exército, vive com regalias super estáveis. Minha mãe é intitulada como do lar. Ou seja, nunca trabalhou oficialmente, mas foi a responsável pela nossa estabilidade financeira, pois meu velho é dado a esbórnias etílicas seguidas de jogatinas. Muitas dentro do próprio quartel. Mamãe que pois sempre limites aos vazamentos orçamentários. Tina, Maria Augustina, minha irmã mais velha é uma magistrada solteirona. Culpa o judiciário por ser sobrecarregada e não ter tempo para se envolver com alguém. Na verdade é que a sua amargura é explícita, pois alguém de bem com a vida não tem uma carranca tão constante como a dela. Oscar, meu maninho, é diferente. Um aquariano, redundantemente sonhador e visionário. Seus ideais de fraternidade e igualdade social são extraordinários. Quanto menos importância dá ao dinheiro e o status mais os atrai. Vive muito confortavelmente com sua esposa, e já recebeu inúmeros prêmios pelo seu trabalho social. É o único que consegue fazer T! ina perceber que o sol nasce diariamente.
Minha ex-mulher hoje mora com o açougueiro, com quem teve o caso que provocou nosso divórcio. Não tenho mágoa. O sujeito é um erudito que encanta clientes declamando os mais célebres autores da humanidade. Um açougueiro erudito. Que inveja.
Eu sou um pseudo, um embuste, por vezes cômico, mas geralmente trágico. Formado em administração enfurnei-me na mais pomposa redoma do conhecimento humano ao tornar-me professor universitário. Fico numa incubadora de conhecimento, onde deixo de me arriscar ou aventurar. Somente transmito conhecimento. Frustro-me sendo mestre somente no título acadêmico. Meu salário é incrível, no sentido mais literal da palavra. Nunca consigo crer que recebo tão mal. Minha vingança, reconhecidamente infantil e pesarosa, é ser o mais medíocre possível.
Meu conforto é a iminente aposentadoria. Tempo para ler, viajar e beber. Já tenho a relação dos livros, os roteiros e os bares. Tudo programado. Esta semana iniciei os procedimentos para esta dádiva. Como só trabalhei como auxiliar até m formar e engajar na carreira acadêmica, o rito será sumário. Espero eu.
Para comemorar reuni todos os meus amigos, colegas e alguns alunos para anunciar os cursos que minha vida estão tomando. Foi no Bar do Frade, zona sul. Lugar pitoresco onde o Ermínio, ex-frade franciscano, dá o tom com muita MPB intercalada com declamações dos etílicos freqüentadores. Preparei meu texto para tal ocasião. Como programado Tina ficou pouco mais que meia hora. Oscar entusiasmado citou Chico Nunes como inspiração social. O coronel e mamãe ficariam firmes até a meia noite. Me avisaram pois não queriam perder meu discurso. Meus colegas acadêmicos, ébrios letrados exibiram-se com primor. Meus alunos desempenharam o papel de moderadores, vaiando e incentivando com sua jovialidade à flor da pele. O Frade tentou me enaltecer, mas foi impedido pelo choro. Quando estávamos no grau, etílico e espiritual, comecei minha declamação após a execução de Trenzinho Caipira, de Villa Lobos e uma das mais belas músicas do gênio. Iniciei:
Sou um perfeito imperfeito
Centrado incoerente
Socialista consumista
Religioso descrente
Agora poderei me redimir
Renascer com majestade
Para aquilo que me fez viver
Boemia e espiritualidade
Como a cigarra trocarei de carcaça
E com ela deixarei o pesado
Mas em meu corpo manterei
O sabor dos amigos que tenho ao lado
Com surpresa ouvi gritos na porta do Bar. O frade gritou, avisando-nos que estávamos em um tiroteio entre a polícia e traficantes. Quando todos tentavam se jogar ao chão, comecei escutar o Quarteto de Cordas Alberto Nepumuceno tocando Carinhoso do Pixinguinha. Este era o mais espetacular quarteto de cordas que havia ouvido na vida. Tudo parecia estar em câmera lenta. A música, as pessoas chocando-se ao chão, as mesas sendo derrubadas, o Frade descontrolado e meu pai, o velho coronel, pela primeira vez amedrontado, desesperado por me ver ainda de pé, ao microfone, parecendo em êxtase. Mamãe com os olhos úmidos me estendia a mão, tentando me puxar para perto deles. Tudo era extremamente belo e dramático. A incoerência da transcendência da música com todos meus queridos irremediavelmente desesperados. Esta alquimia produzia somente um intenso calor em meu peito. Os instantes imortalizados, banhados com recordações das vivências compartilhadas com todos meus ouvintes. Um misto d e! prazer com dor. Talvez um masoquismo aflorando junto à metamorfose que estaria empreendendo a partir daquele instante. Confesso que me senti o mais impetuoso dos homens. Rebusquei as palavras que haviam se dissipado e antes de acha-las faltou-me o fôlego. Senti uma vertente que nascia calor de meu peito. Quente e rúbia. Meu sangue que se esvaia. De repente, não mais que de repente. Encontrei fôlego onde já não mais o havia. Da mesma forma foi com a lucidez que já insistia por me abandonar. Então contemplando a derradeira oportunidade de comunhão com meus queridos me desforrei:
O que é a vida se nela não temos surpresas
Do que ela vale se não sentimos e ferimos
Desculpem-me meus queridos pela breve partida
Pois confundi bala perdida com bela despedida...
Rodrigo Schinzel