Maria Saúva
A puta desce o barranco como se puta não fosse. Orgulhosa na sua beleza mulata, tendo nos olhos girassóis, nas ancas o balanço do rio, no andar a suavidade dos peixes. Prende a saia na cintura e finca as pernas fortes na ribeirinha, descendo a trouxa que traz na cabeça. No bar defronte as línguas se calam, os olhos rebrilham, as mãos suadas se esquecem nos copos. Todos calados, embevecidos, a ver a Saúva lavar a roupa do seu homem.
O nome, Saúva, nascera já na zona, bunda grande, que ela exibia debochada; deixara de ser Das Dores, nome de filha de Deus e virara Saúva, nome filha da puta. Muitas estórias corriam a respeito dela. Diziam que vinha da mata fechada, para além do Urubupitanga, filha de seringueiro perdido e índia cinta larga. Da mãe, herdara o segredo das ervas, o andar macio, os cabelos de juriti. Do pai, a putaria nômade e o sangue esquentado. Diziam também que era um vulcão. Quem se deitava com a Saúva tinha que ir preparado, ela fazia pelo gosto, o sujeito saía babado e de olhos perdidos.
Era uma puta séria, não dada a gracejos fora de hora. O homem podia ir para a cama com ela, uivar a noite inteira, dia seguinte encontrar na rua e a Saúva nem olhar. Boa puta essa. Sabia se dar ao respeito e respeitar pai de família. Começara a carreira na casa de Joana, a Sarará, cafetina de nomeada na boca do rio e de lá não saíra mais, prata da casa, se tornara conhecida e era a mais disputada de todas.
Um dia levou pra sua rede o Chico, aquele mesmo que tinha descoberto a lavra, gigante tinhoso, agora enricado, e Chico virou cliente assíduo. Dali, para lhe montar casa e comprar uns trens, foi um pulo, mas a Saúva era matreira, trazia o Chico na ponta dos dedos. Ela ia, mas as tardes eram dela. Chico era um bom homem, lhe fazia os gostos, lhe dava conforto, mas era só. Gostava da Sarará, gostava do cheiro da casa e da putaria. Ele que escolhesse.
Chico, temendo a falta do corpo mulato, achou melhor menos do que nada, sabia que o gosto da carne dela estava entranhado e concordou. Dividia a mulher, mas exigia que ela não se dedicasse a um só, que distribuísse os cheiros e os carinhos. Belle de jour do barranco, ela topou e ia levando a vida como gostava. Cuidava do seu homem, pelas manhãs lhe preparava a macaxeira à gosto e as noites eram puro deleite. Mas nas tardes calorentas e suadas a Saúva atendia os de mais sorte lá na casa da Sarará. Quando Chico andava pela rua ninguém ousava olhar duas vezes. Era de poucas falas, cada um sabe onde lhe aperta o couro. O homem era graúdo e rápido na faca, disso todo mundo tinha notícia. Carregava meia dúzia de riscos no cabo da adaga e para cada risco uma alma que ele tinha despachado dessa para melhor. Da sua mulher não queria ouvir palavra e ai de quem se metesse a besta. Para ele era Das Dores, Saúva ele não conhecia não. E vivia assim, feliz da vida, estranhando o que não q! ueria e rindo contente da parte que lhe cabia.
A roupa era pouca e ela era forte, bater na beira do rio lhe fazia bem. \"Boto os bichos pra fora\" dizia pra vizinha Alzerinda, que vivia de olho na vida e na cozinha da Saúva. Boa cozinheira, ela tinha aprendido com a mãe índia fazer uma tartaruga de dar gosto e Alzerinda não perdia uma, era sempre uma boca a mais na mesa farta. Boca na mesa e na vida da Saúva, que falava pouco, mas era um bom ouvido. Com a roupa torcida no balaio, ela tomou o rumo de casa. A manhã já ia alta e era hora de preparar o jaraqui para o Chico que ia chegar louco de fome e desejo. Não deu atenção aos olhares que, indos do bar, lhe queimavam a pele. Estava acostumada. Eles olhavam mas não piavam. Todos sabiam da faca afiada do Chico e do ciúme dele. Saúva para rir de gracejo, rebolar as ancas e convidar para a rede só na casa da Sarará, quando a tarde começasse a descambar.
Aquele dia, quando já estava perto da praça, percebeu, entrando no hotel do Pedrosa, um moço claro, com jeito de gringo, cheio de sacolas, que quando viu a mulata, toda ela uma deusa, carregando o balaio na cabeça , perdeu o rumo, deixou cair as malas e ficou de olho estatelado . A Saúva riu por dentro, de novo fingiu que não era com ela,passou a mão nos cabelos,coçou o decote, se esmerou no gingado, deu um balanço de ombro e passou altaneira, quase roçando o corpo suado naquela loirice estrangeira. De rabo de olho percebeu que o dito cujo ficou ali, comendo-a com os olhos até ela desaparecer na curva da esquina.
Dia seguinte ela foi ao mercado e quando voltava, na mesma praça lá estava o gringo, sentado à mesa do restaurante do Turco. Tudo se repetiu, ele a olhou assombrado e ela fingiu que não via e nessa malemolência, o sol abrasando tudo, o brilho do suor no corpo, foi desfilando devagar, ele engasgando no peixe, ela caprichando no passo, ele arfando no peito, ela se dando ao deleite.
Aquilo se tornou um hábito. A Saúva mandou fazer roupa nova, aumentou um pouco a abertura da saia, desceu o decote, usou as essências de D. Alzerinda, lustrou mais os cabelos e fez do restaurante do Turco sua passagem diária. Gostava de brincar com o desejo no olho azul do gringo, de perceber que ele suava, um dia escapou um olho no olho, outro dia um ligeiro sorriso mais convidativo, mas foi tudo. Nada de intimidade maior que ela não era disso. Palavra era palavra, de manhã Das Dores, de tarde Saúva.
Naquela semana Chico tinha ido para o garimpo e ela, na casa da Sarará, espiava pela cortina os fregueses chegando, preguiça no corpo e moleza na alma, quando viu o gringo entrar com mais dois estrangeiros, sentar em um canto e pedir bebidas. Saúva se eriçou toda, chamou a negrinha que anotava os pedidos \" Ta vendo lá o loiro no canto? O de camisa azul? Esse é meu e não quero enxerida\" A negrinha assentiu, surpresa. Saúva não era desses arroubos e exigências, não gastava tempo com conversa, topava o que vinha e ainda se divertia. Lá pelas tantas foi até a mesa e ofereceu as putas. Cada um abraçou uma e se escafedeu no rumo das redes, mas para o gringo a negrinha segredou que havia um presente especial da casa. E levou o homem, aturdido, pela mão até o quarto principal que pra gringo não existe rede que preste quando se trata de alegrar o corpo. Deixou o sujeito lá, uma sala alta com uma cama grande e de lençóis muito brancos, um ventilador zumbindo no teto, uma meia luz pro v! ocada pela cortina estampada e um cheiro de magnólia no ar. Foi quando a Saúva saiu do canto escuro, os dentes brilhando em um sorriso, os olhos prometendo tudo e foi se aproximando mansinha, tocando os dedos no peito dele, ouvindo o suspirar do homem. Ele tentou falar, surpreso e contente, mas ela o calou com a boca, a língua quente escorregando, as mãos hábeis lhe tirando a roupa. Depois do gozo apressado e forte, ambos mudos, ele se pos a explorar o corpo dela, procurando os desvãos todos, regando de saliva as coxas roliças, se perdendo naquela morenice que gemia e se arqueava enquanto ele lhe ia comendo aos poucos. Quando ele se fartou de trincar os dentes ela se inclinou sobre ele e bebeu de sua fonte, devorou o azul dos olhos e se maravilhou com a brancura da pele. Não trocaram uma palavra até ele quase adormecer e ela perceber o sol se pôr. Então se vestiu, célere, e saiu sem ruído.
Desse dia em diante ela mudou. Não adiantava mais a Sarará vir cheia de dengo, pedindo para receber esse ou aquele ricaço que lhe jogava o ouro no colo e pedia a puta predileta. Saúva só tinha olho para o gringo e só ele lhe tinha a graça. Ele continuava a babar por ela, desejoso, pelas manhãs, quando ela passava e nem sequer lhe dava um ai. Mas pelas tardes, quando se engalanavam no quarto mudo e mormaçado, o mundo todo era pouco para os ais que ela dizia. Sem permitir palavra, um nome que fosse, a Saúva delirava, calada e perdida, nos dedos dele, e lhe tapava a voz fazendo o gringo gemer preso na sua boca. A cada dia ela descobria um caminho novo a percorrer naquela pele clara, tão diferente da sua, e ele se emaranhava mais no dourado escuro dela, redemoinhava no grito e no gemido de bicho que ela soltava quase esgarçando a tarde em farrapos.
O gringo até esqueceu porque veio dar os costados na terra, esqueceu endereço, ia perdendo as carnes e luzindo os olhos. Vivia no agrado dela, sem falar, sem saber como e quem era aquela aparição que lhe inundava o corpo, tentava dizer alguma coisa, mas percebia que se apertasse muito a passarinha lhe fugiria pela janela. Longe disso, ele queria mais, queria se perder, nada de falas, amor mudo, feito de grunhido e gozo, uivar do corpo e lacerar da alma.
O tempo foi passando o fuxico correndo solto, saindo do puteiro e alcançando a mesa dos botecos. Chico, de nem sonhava com isso, que ninguém era louco para se arriscar na conversa, mas andava desconfiado da mulher. Ela vivia de cochicho com Alzerinda e nas noites que se embolavam na rede ela lhe parecia impaciente. As tardes estavam se prolongando e isso não era o trato. Começou a seguir Maria quando ela ia ao mercado e não tardou e observar que o caminho dela mudara. Escondido atrás do oitizeiro ele viu quando ela requebrou o passo e o olhar do gringo a comendo toda. Dali para apertar Alzerinda foi um pulo e a vizinha entregou tudo, inclusive o lugar do encontro. Esquentado, ele procurou as mulheres da Sarará, que depois de uns agrados completaram a historia. \"Saúva não é mais a mesma, está de cliente fixo, não aceita mais convites. Enluxou. Agora a casa treme com a algazarra deles, amor de grito e gemido, que atravessa as portas e faz inveja nas mulheres.\"Chico sentiu u! m frio na barriga, voltou pra casa, afiou a faca e esperou dia seguinte.
Na mesa do fundo, escondido na sombra, ele acoitou. Quando viu a Saúva chegando de andar dengoso, rilhou os dentes e esperou que ela se aproximasse bem, com os olhos presos no gringo que suava e tremia. Com agonia no peito Chico, de um bote só, saltou de repente e cravou fundo a faca no peito dele. Foi como se o sol parasse e derramasse vermelho no mundo. A mulher estacou, apavorada, e viu o homem virando os olhos, estrebuchando em um chafariz de sangue, a gritaria, Chico avançando para cima dela, sendo agarrado, esperneando. Ela correu até o gringo caído, a blusa se ensopando e lhe acolheu a cabeça.
Foi ai então, entre espasmos e golfadas que lhe ouviu a voz pela primeira vez.
- Frederico - ele ainda conseguiu dizer, entre todas as dores.
- Das Dores - ela respondeu lhe fechando os olhos.
Vera do Val