O último soneto
Escreveria um soneto. Não apenas mais um, dos muitos. Mas \"o\" soneto. E então ela entenderia. Sim, naquela derradeira demonstração de sua pena, finalmente revelaria seu coração. Olhou a garrafa de vinho, largada pela metade, em cima da mesa. Depois de terminar o soneto, usaria aquele mesmo líquido, escuro e cor de sangue, e acabaria com tudo. Era só misturar algumas gotas de um veneno, de preferência o mais raro e exótico possível. E teria um fim digno do seu último soneto.
Porque este seria magistral. Sua obra-prima, que o tornaria finalmente reconhecido. E que faria com que ela o amasse. Há quanto tempo a observava em silêncio, enquanto passava pela rua, sempre acompanhada por sua dama de companhia. Cabelos de ébano, pele de alabastro, olhos como o mar velados pelas cortinas de veludo que eram seus longos cílios.
Sequer sabia seu nome. Não tinha idéia de onde morava, ou o que fazia. Ela sequer sonhava que ele, pobre infeliz, existisse. Mas isso não era necessário. Ela era a sua musa, o seu amor. Seria de sua imagem, perfeita, limpa, pura, sem sequer a macula do conhecimento invasivo, que ele tiraria a inspiração para o soneto perfeito. Que seria infinitamente superior àqueles versinhos medíocres que publicava em revistas literárias, e que lhe davam o dinheiro, aquele sujo capital necessário para viver.
Levantou-se, e percorreu o quarto imundo até a janela. Na noite fria, o luar transparecia sereno, lembrando a brancura da pele dela. Sim, escreveria um soneto. O mais belo de todos. E morreria, por suas próprias mãos. Assim se vingaria de todos os que o humilharam, e também dela, que passava por sua vida, como se tivesse esse direito.
Entrou em um delírio febril. Imaginou-a de luto, chorando desconsolada, sobre seu túmulo. Em suas mãos, uma cópia do soneto, suja e amassada, manchada de lágrimas. Viu-a definhando de tristeza pelo amor que tivera sem saber. E no auge da alucinação, estava lá quando ela, em um suspiro sentido, entregou a alma, para finalmente se entregar ao seu amor.
Riu, até perder o fôlego. Começou a tossir, aquela tosse doentia que o perseguia há anos. Sentou-se na cadeira e entregou-se aos espasmos dos pulmões doentes. O velho gosto de ferro subiu a sua boca, deixando um travo amargo. Com dificuldade, levantou-se e buscou um lenço para limpar os lábios. Quando o tirou da boca, estava manchado de sangue. Outro acesso de tosse o deixou ofegante. A dor tomou seu corpo.
Abriu a pequena caixa de remédios. Pegou a dose de láudano que tiraria a dor. Mas um terceiro e mais brutal acesso de tosse fez o medicamento cair no chão. Ajoelhou-se, ainda tossindo. A vista ficou turva, sentia frio. O desespero tomou conta de si.
Não podia morrer agora, sem escrever seu último soneto.
Enquanto visualizava a sua musa, ele veio a sua mente. Completo. E ele viu que era realmente genial. Mas já era tarde para o derradeiro soneto.
Ana Cristina Rodrigues