CÚMPLICES

Ver-te em peças mínimas, íntimos papéis de presente, cuidadosamente para mim escolhidos, acalanto à minha vaidade, numa imerecida homenagem, por teu desejo e generosidade, para o deleite de meus olhos ambiciosos, que os dissolvem em morna umidade. Expões assim o teu corpo à minha decadente vitalidade e nele, em que a beleza sobra, satisfaço minha juvenil curiosidade, nisto que nem é corpo, mas genuína obra de inquestionável genialidade.

Desafiado por teu sorriso desdenhoso, convidado por ti, compartilho de tua mais preservada intimidade; dentes e lábios que brincam, instigam e digladiam com meus lascivos instintos e provam a mim e a ti mesma, que nem todos os meus desejos, de toda uma vida pervertida, se reunidos num só instante, seriam em muito distantes do fogo que te escala as pernas e te desperta a ninfa.

Delineio cada curva tua e cada monte com meus dedos todos ousados, a imergir na borbulhante fonte, de indecências e veleidades, içado ao cume de nossas vidas aflitas e latejantes, em incomensuráveis delírios e breves mortes constantes. Na perfeição do ambiente que a meia luz nos presenteia, tua tez macia de penugem eriçada, provoca, serpenteia e roça minha libido exaltada, antes mesmo que eu te dispa desesperadamente.

Reconheço no teu rosto minha excitação contagiosa, depositada nos teus rasgados olhos de fêmea que penetro, na tua boca entreaberta e em narinas que exalam hormônios que te inundam as veias e afogam o mundo. Ansiam-me os teus seios de seda, e tuas mãos de palmas pálidas, de dedos frios e trêmulos, esvaziados do sangue que já te irriga o coração apressado e o voluptuoso ventre de umbigo profundo.

Sou vampiro sedento da vida que te percorre inteira e te mantém quente. Basta-me a lembrança de teu pescoço viçoso, de teu colo exuberante, para que eu, ainda que distante, seja da morte libertado e suporte todas as cruzes, águas-benta, luzes e réstias de alho. Mas a sede que me consome os dias, pela noite agravada, não é de teu nutritivo sangue, mas antes, de tudo o que és em minha triste morte-vida e de tudo o que para minha redenção representas neste instante. Deslizas ao meu encontro embriagada, resoluta e inequívoca; tudo em ti é pura delação da gazela fogosa que urge do sacrifício em altar consagrado e da concretude de meus membros, de meu corpo de homem e de minha gulodice de menino.

Teus cabelos, moldura de um quadro de Miró, rédeas fortes que às tuas ancas auspiciosas me mantêm atado, enquanto cavalgo, ora forte e obcecado, ora terno e lento, qual o mar após o tormento, em seqüências longas de movimentos cálidos, a cada ida e vinda, mais rijo e pleno, invado-te e te reinvento, finjo abandonar-te por um momento, num ritmo tão alternado quanto a brisa e o vento, no esvaecer de um agosto gelado, de solidão e esquecimento.

Ao fim de tuas costas lisas surpreende-me a cintura delgada que o quadril alarga com nádegas perfeitas e empoladas, por ele, com orgulho, ostentadas, prenúncio de coxas firmes, densas e torneadas; esculturas de Michelangelo induzem-me ao desvario. Beijo-te afoito, com a suavidade que mereces; lambo-te com a lascívia que esperas; mordo-te com a sordidez de que precisas, porque sei, não te contentarás com nada menos profano, enquanto sinto o teu coração forte e ligeiro bater em meu próprio peito.

Onde estamos não é quarto com cama e criados-mudos, nem beira de mar com panos sobre a areia e o chicotear de ondas murmurantes, nem pedra em montanha airosa, nem feno fofo em curral, nem felpudo tapete em chão de sala com lareira e vinho, nem cadeira para rápidos desatinos, mesa muito menos é; não é louça de banheiro frio, nem banco explícito de praça, nem assento reclinado em automóvel de vidros embaçados, nem alpendre fresco de sobrado, nem rede em ampla varanda de casa espaçosa... onde estamos é útero de mãe amorosa que nos acolhe, protege, aquece e alimenta; é placenta almofadada que nos faz esquecer do tempo; que apaga nossa agenda, cancela o compromisso e areja o pensamento; que nos pára o relógio, nos atenua o tônus e suaviza a mágoa; que nos torna a vida branda e a dor amena. Aqui somos apenas nós e nosso consenso de nos desfrutarmos sem pudor e sem pressa, entre mirra e incensos, enquanto lá no mundo, agora mesmo, correm, odeiam-se, competem, invejam-se, desprezam-s e! , traem-se, escorraçam-se, espezinham-se, sufocam-se e se matam, com bem menos remorsos que nós, a quem apenas amar interessa.

Minha face colada à tua, num abraço mais acoplado, para que por minha boca escapem todos os meus ofegantes afagos, que digo ou tento dizer-te, enquanto sou vencido pelos soluços do desejo, desprezado por minha própria língua que insiste em prevalecer, ao fugir-me da boca na busca insana por tua orelha, por teu umbigo, ou por qualquer um dos três pontos intumescidos: vértices do triângulo invertido, circunscrito por geômetra preciso, em teu corpo formoso, para contorná-los, tocá-los todos em rápidas, escandalosas e devotadas brincadeiras e, se possível, invadir-te, fazer-te estremecer cativa, dos pés à cabeça, causar-te arrepios febris antes mesmo que desfaleças.

Espremo-te contra mim ainda mais, até que não consigas sequer o ar necessário; teus seios macios em meu peito de pelos encharcados; minhas coxas entre as tuas escorrem suores por regatos que se cruzam, misturam e se confundem à jusante de nossos pubs latejantes; afasto-me de ti um breve instante, para me certificar de tua beleza impossível e testemunhar teu catártico transe.

Extasio-me por tua seiva brilhosa e translúcida que a mim molha abundante e constato pelos teus olhos vidrados; pelo bailar de teus seios em nosso ritmo, pelos espasmos de teu ventre, cochas e pernas, pelo planar de teus pés suaves, pelo requebrar frenético de teus quadris, pelas contrações sucessivas de teu ávido alvéolo em mim; pelos teus três pontos eretos que me denunciam a culpa; pelas palavras desconexas que te limitas a um sôfrego ensaio, que não estás mais ali, mas em algum outro lugar em que a mera visita não pode, por todos os mortais, ser sequer sonhada.

Sem emergires da insanidade em que mergulhaste, pressentes que o máximo momento veloz se aproxima e a obsessão te sacode. Choras, então, ao implorar-me para que te faça por fim cumprir tua sina de mulher. Eu, afortunado, não tenho nenhuma alternativa senão a de sufocar o teu cio melado. Passo a te estocar fundo e mais fundo; minha obstinação ilude-me, faz-me crer que teu coração possa ser por ali alcançado; abraço-te com a firmeza do urso, beijo-te a boca sem fôlego, para que grata recebas minhas íntimas gotas, conduzidas a ti por câimbras sistólicas que me esvaem até a alma. Ofereço assim meu maior tributo à vida e minhas libações à deusa que impiedosa me alucina.

Sim, agora de fato somos um, tudo sabemos de nós sem a necessidade de uma só palavra; fundidos pelos gozos extremos, unidos pela distância mínima. Não somos dois corpos, mas uma alma única. Mais do que organismos que vicejam, espíritos que se confessam recíproca e despudoradamente. Por fim, esparjo dentro de ti, ou sobre tua pele ensopada, só para que minha paixão lhe seja em tudo conhecida, em espasmódicas e ondulações que me contorcem inteiro e me ameaçam a vida, meus gametas agoniados pela perpetuação de mim mesmo. Minhas sementes líquidas que te percorrerão os labirintos estreitos, agora regam teu ventre inquieto, transbordam de teu umbigo obsceno, untam-te os seios inchados, escorrem-te pelas nádegas trêmulas de fera apenas por ora saciada, que voltarei a serenar o apetite.

Assim, encontramos o caminho que nos reconduz aos Jardins do Éden, de onde, estou certo agora, jamais fomos expulsos!

Elcio Domingues

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