Recuerdos e ufologismos

O barulho dos carros e das pessoas que transitavam pela rua naquela hora já era escutado na varanda do apartamento. Foi para lá que Sinval se dirigiu, juntamente com uma lata de cerveja e um copo de vidro. Sentou-se na cadeira de plástico, encheu o copo com dois terços de líquido e um terço de espuma. Colocou a cerveja no chão, esticou as pernas e passou a observar o movimento do sábado à noite que havia se formado lá embaixo. Luzes, gente, vozes, música. Aquilo tudo distraía Sinval e o deixava meio hipnotizado, era como se fosse um alucinógeno, que tinha o seu efeito aumentado à medida que também ia aumentando a quantidade de álcool. Talvez fosse só isso, o álcool, mas ele imaginava que o poder em seus sentidos era causado pelo frisson que vinha lá de baixo e pelas lembranças que aquilo tudo trazia. Naquele dia o movimento estava acabando mais cedo que o costume, nem música podia se ouvir mais lá de cima. Devia ser o fim de mês ou feriado da próxima semana. Sinval aproveitou a ida à cozinha para buscar mais uma cerveja e trouxe um pequeno radinho de pilha. Decidiu ligar o aparelho em uma rádio AM. Queria escutar umas músicas diferentes e ouvir as participações dos ouvintes. Era divertido aquilo, também trazia outras diferentes lembranças. As cervejas foram se sucedendo e o movimento nas ruas agora era bem fraco. Sinval continuava lá da mesma maneira, ouvindo pacientemente as histórias contadas no rádio. Distraído estava com os pitorescos relatos trazidos pelas ondas do rádio, que nem notou quando uma luz colorida aproximou-se da varanda do seu apartamento, trazendo com ela um objeto metálico que se estabacou contra a parede lateral da varanda. O susto fez Sinval quase cair da cadeira e jogar a metade da cerveja no seu short azul de algodão. “Merda”, ele disse enquanto tentava limpar a cerveja do calção e entender o que havia acontecido. Ao levantar da cadeira e olhar para trás, Sinval viu o objeto, que rodopiava no canto da varanda. Ainda emitia uma luz fraca, mas que sumiu completamente quando o objeto parou de girar. Sinval ficou olhando para aquilo sem saber o que fazer. De onde teria surgido aquela coisa? Pensou que poderia um brinquedo desses modernos, de controle remoto, ou um aeromodelo descontrolado que alguém perdeu por aí. Ficou de longe olhando para aquilo sem saber o que fazer. Chegou perto da coisa e resolveu apanhar o brinquedinho. Era um verdadeiro mini disco voador. Tinha o formato de um disco, achatado nas bordas, mas gordinho no meio. Era do tamanho de uma tampa de privada. Lâmpadazinhas circundavam toda a circunferência do objeto. Procurou inscrições ou informações do que poderia ser aquilo, de onde veio, qual a fabricação. Não achou nenhum made in. Procurou um botão de liga e desliga. Nada. A única coisa que viu foi uma espécie de alavanquinha que ficava por baixo do objeto e que tinha um desenho parecido com o emblema do Corinthians. Puxou a alavanca e a tampa do negócio se abriu de uma vez só, o que fez Sinval jogar aquela coisa no chão. Ficou mais uma vez olhando de longe, esperando alguma coisa sair lá de dentro, talvez homenzinhos verdes com armas de raio laser ou insetos com capas vermelhas e sabres de luz. Nada. Só um pouco de fumaça que logo se dissipou. Viu algo lá dentro que lhe pareceu familiar. Foi chegando perto e viu, toda dobrada e amassada, a sua camisa de festa. Aquela da sua adolescência, de quando começou a sair de casa para as festinhas e baladas. A camisa que estava usando quando deu o primeiro beijo na boca de sua vida e quando fumou o primeiro cigarro, escondido, na festa de 15 anos da sua prima Sirlene. Tinha até o pequeno furo que a brasa desse mesmo cigarro fez no punho da manga esquerda. Nem se lembrava do que tinha acontecido com aquela camisa. Se ficou pequena, se ele deu para alguém, se sua mãe doou para os pobres ou para os velhinhos. O fato é que ela estava ali de novo, trazida por aquela maquininha voadora. Boas lembranças vieram com a camisa, conseguiu até sentir o cheiro do perfume que usava na época. Ficou ainda ali pela varanda por mais duas latinhas de cerveja. Estava admirado com aquilo tudo, apesar de não ter nenhuma explicação lógica. Mas também não estava em condições de procurar explicações lógicas e tampouco queria descobrir algo. Antes de resolver ir dormir, pegou tudo aquilo e guardou na despensa, dentro de um cesto de roupas aposentado. Não contou o acontecido a ninguém. Teria certeza que o taxariam de maluco, talvez até cogitassem a sua internação num Pinel desses da vida. Porém agora, todo dia Sinval gastava alguns bons minutos na varanda tentando descobrir um sinal. Ate umas cervejinhas rolavam nessas ocasiões. Não descobriu nada. No outro sábado lá estava ele a repetir o ritual dos fins de semana. O barulho do movimento nas ruas, a cadeirinha de plástico e o copo de vidro cheio de cerveja. Um terço de espuma. E ele lá, entorpecido pelo álcool e pela agitação na rua. Lá pelas tantas, ele se lembrou do rádio que ouvia na semana anterior. Foi lá na sala e trouxe o aparelho, sintonizando-o na mesma estação de Amplitude Modulada. Lá embaixo o movimento já começava a diminuir e ele passou a vigiar mais o espaço aéreo. Uma cinco músicas depois, todas oferecidas com carinho ao locutor do programa, viu uma pequena luz que surgiu acima do edifício à sua frente e que deslizava diagonalmente em sua direção. Viu a luz ir crescendo gradativamente. Olhou para as janelas vizinhas e para o chão, tentando ver se alguém mais estava vendo aquela aparição. Ninguém. Tudo Normal. Ficou meio encolhido no fundo da varanda e viu quando o clarão invadiu o lugar e o objeto novamente foi de encontro à parede lateral. Lá estava ele novamente em rodopios e com as luzes fracas se apagando a medida em que parava o giro. Desta vez não perdeu tempo. Correu até lá e já foi procurando a alavanquinha corintiana no fundo. Desta vez, quando a fumacinha sumiu, apareceu uma sunga. Larga, de um grosso material azul claro, com um pequeno solzinho de metal dourado costurado na parte da frente. Reconheceu na hora a sunga de seu falecido pai. Aquela mesma que ele usou na única vez em que viajaram de férias para a praia. Foi quando Sinval viu o mar pela primeira vez e ficou sabendo das histórias emocionantes dos piratas que seu pai contava. Quando eles fizeram castelos e túneis, que de noite seriam invadidos pela água salgada e por siris desaforados. Quando eles desafiaram ondas perigosas e encheram as sungas de areia. Ainda havia resquícios de areia naquela sunga que ele segurava agora. Permaneceu mais um tempo por ali, em meio a lembranças e depois guardou tudo novamente na dispensa e foi dormir. Sinval agora tinha todos os rituais do fim de semana e o aguardava com ansiedade. Cadeira, cerveja, copo e rádio AM. O movimento das ruas e o entorpecimento. E a luz se aproximando e o objeto rodopiando pelo chão da varanda. O metalzinho redondo fez mais quatro viagens e trouxe um chaveiro de hotel, um tubo de lança perfume da válvula prateada, uma gravata vermelha e uma cueca de lycra preta. Grandes lembranças vieram junto a esses objetos, recordações de uma época que tinha ficado para trás, decerto em uma outra dimensão por aí. Pelejou uma maneira de entrar em contato com os remetentes daquelas parafernálias, mas não imaginava como. Queria maquinar uma forma de ser abduzido e ser levado dali para o lugar de onde vinham aquelas coisas. Arrumou um rádio maior, foi em sessões espíritas, piscou luzes em seqüências matemáticas. Nada. Pensou em ir a uma agência de turismo e comprar um pacote para Machu Picchu, parcelado em 12 vezes. Desistiu. Viu todas as suas esperanças e planos irem por água abaixo quando a sua esposa veio lhe mostrar o pequeno rádio de pilha quebrado pela brincadeira de bola das crianças dentro de casa. Aquele mesmo rádio em que ele sintonizava o AM do sábado à noite agora era apenas um punhado de fios e comandos eletro-eletrônicos amontoados numa caixa plástica rachada. Tomou aquilo das mãos da mulher e deu uma baita bronca nos meninos. No outro sábado ainda repetiu todo o cerimonial, mas não obteve sucesso, Não veio nada, faltou o rádio, que jazia quebrado ao lado da cadeira plástica. No outro dia jogou o transmissor no lixo. Aproveitou para jogar também as coisas que estavam no velho cesto de roupa da dispensa. Guardou apenas o lança perfume. Iria ser útil para ajudar a suportar as próximas noites de sábado.

Leonardo Rezende

« Volta