A lareira de Anita P.

Desgraçadamente, as noites nesta casa estão cada dia mais frias. Tão enregelantes! Creio que deva ser pela fresta que se abriu no telhado — parece que algo removeu uma das telhas de seu lugar, dando, assim, passagem para o vento que ao atacar a casa entra pelo buraco resfriando o sótão, o assoalho, os cômodos e toda a casa, por fim. Há anos não respiro o ar daquele sótão. Não sei! Sempre que me aproximo da pequena escada que prenuncia a sua entrada me tomam arrepios e sensações estranhas; inexplicavelmente, os dedos das mãos se inquietam e se entrelaçam frente ao peito, a garganta resseca e fica impossível resistir a esse conjunto de inquietações que me suscitam à sua maneira para que me afaste do sótão. Sem dar as costas à escadinha que leva ao sótão, eu sempre me distancio vagarosamente. O Sr. que ficou incumbido de tomar conta da casa desconhece o problema apesar de eu ter lhe dito várias vezes. Parece não dar a mínima ao que eu falo, aliás, parece não dar a mínima para mi m! já que passa por aqui uma ou duas vezes por semana e nem se dá conta da minha presença. Me trata, de fato, como um móvel ou algo de natureza invisível.
Porém, eu sempre gostei um pouquinho do frio. Das estações do ano, o inverno sempre foi a minha favorita. Sempre gostei de luvas, cachecóis, casacos. Fazia questão de deixar entornar no ambiente da casa um clima de Inverno Europeu. Sim! Fazia tanta questão disso que mandei construir uma lareira na sala. Uma linda lareira de estilo clássico-europeu...!
Algumas pessoas que vêm visitar a casa — as de gosto fino e apurado logicamente — sentem fácil esse clima confortável e acolhedor que se espalha delicado pelos cômodos e corredores tornando-se mais forte e mais perceptível na sala da lareira.
Outras pessoas — sem fino tato e bom senso — impressionam-se pelas dimensões da casa, pelo bom aproveitamento do espaço-ambiente e pela ampla cozinha que proporciona boa mobilidade pela ótima localização dos armários, do fogão e da pia e também pelo fácil acesso à dispensa. No entanto, não aderem muito bem a idéia de confortabilidade da casa e lançam críticas desmedidas à lareira. Não a vêem com bons olhos. Dizem ser de tamanha inutilidade uma lareira agregada a sala de uma casa em um país tropical onde o nervosismo do inverno aquietasse simplesmente com poucas roupas que nem chegam a serem feitas dos tecidos mais grossos que existem no mercado. Acham ridículo e fora dos padrões uma lareira de estilo clássico-esuropeu nas dependências de uma casa que existe sob clima de uma terra em que os ares são quentes quase o ano inteiro. Advertem dizendo que se fosse esta casa nos Alpes Suíços, na Rússia ou em outros países europeus como Alemanha, França, Inglaterra... seria normal e c o! mpreensível a necessidade de uma lareira que aquecesse bem a casa oferecendo, assim, maior confortabilidade já que nesses lugares, sim, o inverno é duro e rigoroso aos extremos, inutilizando, desta maneira, o uso de umas roupas à mais, pois não seriam correspondentes ao frio. Alguns fazem piadas dizendo que, se aqui morassem, se sentiriam estrangeiros em sua própria residência; que se sentiriam brasileiros ainda, porém, adentrando as dependências da casa de algum burguesinho da Europa. Dizem mais ainda: que a solitária viúva, “Madamme” Anita P. de Castro e Albuquerque, devia não gostar do Brasil para querer morar numa casa onde o clima que prevalece, a abstrai totalmente da realidade cotidiana e das comuns moradias das famílias brasileiras; realmente originais e adequadas ao clima e ao bom gosto brasileiro. — Que realmente, não é verdade! Adoro o Brasil! O Brasil tem um certo charme, uma coisa intensa, uma beleza... que parece ser, às vezes, melhor reconhecida por estrangeiro s! que por alguns brasileiros que tratam com desdém e desprezo o meu “brasilzinho do meu coração”. — O que eu compreendo muito bem, pois certas pessoas não sabem conviver com tendências e sofisticações, tampouco com o charme de uma casa com uma lareira de estilo clássico-europeu. De certo são pessoas que não apreciam — talvez por incapacidade — o sabor de um bom chá sob o calor gostoso de uma lareira numa tarde de inverno...!

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As pessoas já não vêm mais tão freqüentemente à esta casa.
Antigamente, era sempre alegre e cheia de pessoas em todas as épocas do ano. Mas, de uns tempos pra cá tem se tornado tão solitária e fria a vida nesta casa e o ambiente também. Tão enregelante! Creio que deva ser pela fresta que se abriu no telhado — parece que algo removeu uma das telhas de seu lugar, dando, assim, passagem para o vento que ao atacar a casa entra pelo buraco resfriando o sótão, o assoalho, os cômodos e toda a casa, por fim. Há anos não respiro o ar daquele sótão. Já tem tempo também que tornou-se inviável usar a lareira, pois, algo parece estar obstruindo a chaminé e sendo assim, não tenho como ascender o fogo para aquecer a casa durante as noites que parecem ser mais frias à cada dia.


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Hélio está tentando vender a casa o que ficou muito difícil depois que foi descoberto um corpo de mulher em decomposição no sótão. Vem algumas vezes por semana, trazer pretendentes dispostos e condicionados à comprar a casa. Mas, infelizmente ele tem de citar o caso e o fracasso da venda, apesar de algumas pessoas gostarem da casa, é praticamente inevitável...!

Isac Dias

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