As águas

O que estaria fazendo um menino olhando o lago, as águas procurando decifrar até as profundezas?

Sozinho, calado a olhar... além... o infinito.

O tempo não existe para esse ser sem rebanho se não se fizer o resgate do passado quando um par de excursionistas passou a decodificar alguns elementos da natureza ali postos ao seu alcance. Faziam parte de uma programação dessas que se destina a grupos de pessoas ditos da terceira idade, um eufemismo para julg á -los fora da força do trabalho que faz funcionar a sociedade.

Alguns excursionistas, iniciantes, comportavam-se ora como crianças, ora como adultos em equilíbrio precário viviam entre os conceitos pré-estabelecidos e a descoberta.

Mas não “sabiam” exatamente que comportamento era deles esperado nestas situações também eles, experimentadores dessa nova modalidade de lazer para grupos específicos...

E, se entreolhavam na tentativa de imitar, assimilar, ter saída para embaraços, que iam desde descobrir o ponto que lhes era permitido pisar, tocar, cheirar, até falar quando lhes aprouvessem. Com os sentidos alerta para evitar vexames em situações embaraçosas, foram pouco a pouco, construindo “um código de postura” relativamente adequado à situação.

Depois de alguns dias de convívio , perceberam que lhes era permitido formar grupos menores, principalmente, os que estavam sozinhos (sem companheiros ou parentes) e assim , algumas afinidades revelaram-se e algumas habilidades também, criando instintivamente alguns laços, que foram sendo facilitados pela forma de grupamento e distribuição em apartamentos de três e quatro camas, havendo uma separação entre o masculino e o feminino, como em colégios, evitando-se uma suposta promiscuidade que era inusitada entre aquelas pessoas.

O tempo era dividido em dois blocos básicos, um destinado à higiene e alimentação e outro ao lazer. Raramente ficava um tempo ocioso para as vivências individuais.

O dia começava cedo, e após a refeição matinal iniciava uma programação. Como o acampamento ficava próximo a um vale, havia sempre uma caminhada inicial.

Íris e Olivar aproximaram-se logo de inicio, contrariando as probabilidades de que isso fosse possível naquele grupo tão grande e nas condições de afastamento que o pertencimento a gêneros diferentes impunha. Mas ocorreu durante os momentos de refeição e raras oportunidades de tempo livre.

Enquanto a maioria se agrupava de acordo com as distribuições em dormitório e subgrupos, esse par foi ficando e inventando as oportunidades num impulso espontâneo, e discreto. Foi rolando uma relação de amizade baseada na atração, a aproximação tendo provavelmente como suporte uma identificação e empatia. Fato relacionado ao modo como o ser humano se contempla, como narciso, vê sua imagem e gosta. Seja qual for à explicação racional, o fato é que se foram deixando ficar ao sabor da emoção. E era gratificante para os dois poder trocar idéias, experiências e sonhos.

Contudo, chegou um dia em que eles “se perderam” num passeio coletivo buscando outros caminhos. Ficaram admirando recantos naturais e nos meandros foram se perdendo verdadeiramente do grupo maior. Não deram por isso e pouco se importaram porque encontravam um prazer cada vez maior na companhia um do outro e quedaram-se parados, longo tempo, na margem de uma espécie de lago coberto pelas folhagens onde distinguiam dentre as flores nativas, o azul quase lilás do mururé e da vinca.

E o tempo foi passando até que o sol começou a desaparecer.

Percebendo a necessidade de procurar abrigo, fizeram uma caminhada em torno do lago até que o ruído de aves de criação doméstica alertou-os para a presença de outros seres humanos naquela área e foram na direção do som, até dar numa pequena cabana aonde avistaram pequena luz proveniente provavelmente de uma lamparina.

Seguiram para lá identificados pelos animais; um cão latia e um casal de gansos fazia também muito barulho. Atraído pelo barulho o morador apareceu à porta da casa. Era uma senhora muito idosa e sorria para os visitantes, esta, parecia iluminada por um brilho natural de onde emanava muita claridade.

Passaram a noite mais incrível de suas vidas ao pé de uma fogueira, ouvindo lindas lendas contadas pela velha senhora que disse chamar-se Musa. Dentre as várias histórias, a atenção deles foi especialmente despertada pela que dizia ser o lago encantado e nele residir uma sereia e quem mergulhasse em suas águas teria as forças renovadas de acordo com tempo permanecido na água, podendo remoçar muitos anos. Mas era preciso ter cuidado porque a sereia vez em quando se apaixonava por alguém e não o deixava mais.

Foram dormir bastante tarde e no inicio da manhã despediram-se após uma refeição à base de frutas silvestres. Contornando novamente o lago atingiram o local onde a vegetação era mais bonita e resolveram dar um mergulho. Despiram-se e entraram na água devagar. No inicio, notaram que era muito fria, mas, à medida que foram caminhando, verificaram que ela ia se tornando mais tépida e sentiram muito prazer nisso. Demoraram a perceber a modificação que ia se processando em seus corpos, somente quando olharam suas mãos e vendo desaparecidas as marcas provenientes da idade é que se assustaram e lembrando da lenda resolveram voltar ao mesmo tempo de forma mais ou menos precipitada e sem acreditar.

Movimentando-se dentro d'água, o mais rápido que podia, Olivar segurava a mão de Íris, conforme podia, ao mesmo tempo, em que, com a outra procurava afastar alguns galhos que foram surgindo no caminho. Assim iam procurando a margem. Repentinamente, sentiu que a mão de Íris escorregava da sua e num instante viu-a desaparecer nas águas.

Assustado, ficou ali parado e repetidamente mergulhou em volta à procura da companheira. A água foi se tornando transparente e logo ficou como um espelho, ele não compreendia coisa alguma. Viu apenas a imagem de um menino refletida nas águas. Ficou ali parado e à sua volta a água foi desaparecendo como que recuando e ele viu-se na areia à beira do lago a olhar como um sonâmbulo.

Passou por ele um grupo de pessoas perguntando-lhe se vira um casal de idosos. Olhou-os sem compreender nada. O sonho arrebatado, a realidade e o mito uma confusa mistura em sua cabeça. Não sabia em que tempo estava, no passado ou no futuro. O presente assaltou-o. Ouviu a mãe a chamá-lo e caminhou lentamente para a cabana.

Nazilda Corrêa

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