Os dias

Passam-se os dias. Nem presto muita atenção. Faço o que devo fazer sem pensar. Algumas vezes faço a mesma coisa duas ou até três vezes pois não sei se já a fiz. Tenho medo de ficar neurótico e fazer a mesma coisa até o dia de morrer. Mas este dia ainda vai longe.

Levanto-me após acordar. Calço as meias e as botas. Faço um grande alongamento. Dura, talvez, uma hora. Quando me sinto bem disposto, vou correr. Vou pela estrada que parei a moto, voltando pelo caminho que vim. Corro até ficar cansado. Ai viro e volto. Chego ao acampamento por volta das dez da manhã. Devo ter acordado por volta das seis horas, junto com o sol. Fiquei uma hora alongando, isso dá sete horas. Se agora são dez, devo ter corrido umas três horas. Bom. Eu nunca correria três horas antes... antes.

Vou ao alforje da moto e pego queijo, pão e café solúvel. Adoro café. Pena que dá trabalho para fazer. Hoje só tomo café solúvel por ser mais fácil. Preparo o dejejum e o tomo. Arrumo de volta as coisas no alforje, apago o fogo que fiz, recolho o saco de dormir e subo na moto. Olho para o caminho à minha frente. Boto o capacete, os óculos, ligo a moto e entro na estrada.

O ronco forte do motor torna-se constante após algumas dezenas de minutos. Nem sei quanto tempo passa. Avisto um posto de gasolina. Paro. Está abandonado, obviamente. Alguns escombros perto da porta da loja de conveniência e as janelas quebradas mostram que houve confusão. Ligo a bomba de gasolina. Não funciona. Procuro a abertura dos tanques no chão. Encontro. Pego a faca e destruo a tranca. Acho a mangueira que guardo na moto, encosto uma ponta no resto de gasolina ao fundo do tanque e, com algumas sugadas na outra ponta, consigo fazer o vácuo para encher o tanque da moto. Não sem antes beber um bom gole da gasolina. Nunca consegui tirar a boca na hora certa. Ao menos não poderei fumar nas próximas horas. Melhor para minha saúde.

Analiso o posto de gasolina enquanto encho o tanque. É um bom posto, com várias lojinhas ao redor. Isso significa que deve existir alguma cidadezinha nos próximos quilômetros. Nem me dou o trabalho de procurar o mapa que guardo no outro alforje para saber qual o nome da cidade. Não faz diferença. Nela encontrarei o mesmo que encontro em todas as outras. O nada.

Volto pra estrada. Pela altura do sol deve ser quase 1 hora da tarde. Ainda não tenho fome, mas como nada tenho a fazer, entro na cidade para procurar algo para comer. A cidade é igual às outras. Casas vazias, algum comércio, carros e outras coisas nas ruas. E o silêncio. Isso é que me arrepia, este silêncio. O pior é que o vento sempre cisma de passar por entre os prédios abandonados e sempre se ouve um assovio, longe, constante.

Procuro algum shopping ou super-mercado. Se esta cidade demorou para sofrer com a maldição, é provável que todos os centros comerciais já tenham sido saqueados. Mas se a praga chegou rápido, então deve estar tudo mais ou menos intacto. Avisto um carrefour. Chego na porta e vejo que ele está limpo e arrumado por dentro. Coitados. Provavelmente nem tiveram tempo de se organizar para tentar lutar contra as criaturas.

Com o lado oposto da cimitarra, arrebento o vidro da frente. O barulho me faz lembrar que há dias que não falo nada. Grito, bem alto, o meu nome para ver se ainda estou vivo. Entro no mercado. Calmamente, pego um carrinho e vou às compras. Ando por todas as prateleiras, olhando os produtos. Algumas vezes até comparo preços. Pego chocolate, chiclete, carne seca, queijo, algumas latas de conservas, duas garrafas de Jack Daniel's e duas de Urucuiana, duas escovas de dente, dois rolos de fio dental, dois sabões, dez caixas de Jack Stick (uma carne seca industrializada horrorosa, mas que adoro), uma caixa de charutos, alguns remédios para inflamações e para dores em geral, óleo para a moto e alguns cds de rock'n roll. Pego também um toca-cd-portátil e todas as pilhas que cabem no saco de supermercado. Volto para a moto e guardo tudo nos alforges. Volto para a estrada. Fico pensando em como as coisas podem ser diferentes. Desodorante, cremes de cabelo, roupas, comidas saudáveis, diferenças de sabor entre produtos, nada dessas coisas me importa mais. Na verdade, pouco importa. Só queria encontrar outras pessoas.

Lembro que peguei o toca-cd. Paro a moto no meio da estrada, escolho o cd Highway to hell do AC/DC e ligo o toca-cd. No volume máximo, parto com a moto. Vejo que há uma grande reta na minha frente. Acelero a moto até o fim e relaxo. O vento bate no rosto, produzindo o barulho de uma hélice. Junto com o rock'n roll e o ronco da moto, os barulhos ocupam meus ouvidos. E mesmo olhando para a estrada, vejo apenas meu mundo como era antes... antes.

Penso na minha família, na minha mulher, em alguns amigos, em alguns conhecidos, em algumas pessoas famosas na época. Alguns eu vi morrer. E vou lembrando um por um. Cada morte que eu não consegui evitar. Penso na morte dos famosos, que vimos pela tv ou ouvimos por rádio. Lembro que me irritava o marasmo das autoridades e do exército. Não quis ficar esperando por eles. Preparei-me para a luta. Mas não consegui salvar ninguém, só a mim mesmo. E algumas vezes pergunto se valeu a pena. A vida não está boa.

Absorto em pensamentos, olho pelo retrovisor. Nem sei porque faço isso. Há muito não olho pelo retrovisor. Sei que verei apenas a minha poeira. Continuo correndo. Mas alguma coisa no retrovisor chamou minha atenção. Olho novamente. Perto da mata que fica na margem da estrada há um borrão vermelho e branco que não se move com o vento. Imediatamente desacelero e faço a volta. Tiro os fones. Vou ao lugar em que estava o borrão, que agora sumiu. Será mais um morto-vivo? Ele deve ter escutado o barulho da moto. Pego a katana, encosto a moto e entro na mata. Vou investigar, afinal, não tenho muito o que fazer.

Vejo pegadas. Patas grandes. E ágeis. Elas fogem de mim. Enquanto corro o mais silenciosamente que consigo, vejo ao largo o mesmo borrão vermelho e branco. Sigo-o com os olhos. Corro para longe dele, mas na direção em que acho que ele se dirigia, pois na perseguição notei que ele andava para a direita na mata. Alguns minutos depois vejo de perto o borrão. É um lobo-guará. Velho e fraco. Ele me olha e rosna. Nem presas tem o coitado, apenas os dentes de trás. Uma vez li que cachorros e lobos não perdem os dentes de trás pois eles têm a raiz quase colada nos ossos do maxilar. Tive um cachorro que viveu 19 anos. Ao final da vida, banguela na frente e cego, ele encontrava a comida pelo cheiro e mastigava com a boca bem aberta e levantada para que a comida caísse para o fundo da boca e ele conseguisse mastigar. Saudade dele.

Olho para o lobo e rosno também. Agacho-me, para ele ver que tenho os dentes. Se ele fica intimidado ou não, o que sei é que pára de rosnar. Pego no bolso da calça um Jack Stick. Tiro o plástico e jogo para o lobo. Ele se assusta com o objeto mas logo vai cheirá-lo. Faminto, devora o Jack Stick em três bocadas. O plástico do Jack Stick guardo no bolso. Nem sei porque continuo sendo ecologicamente correto, afinal, não vou deixar a Terra limpa para meus filhos. Assovio. O lobo chega perto. Afago-lhe a bochecha. Ele é um lobo-guará, deve ter mais de 1m de altura e uns 1, 40m de comprimento. Mesmo banguela, ainda é um animal feroz. Mas come em minha mão como se fosse um filhote. Isso jamais aconteceria antes.

Volto para a moto, chamando meu amigo. Ele chega e cheira a moto enquanto abro um alforje. O lobo faz menção de levantar a perna para mijar no pneu da frente. – Hei – grito. Ele se assusta. – Porra, cão, esse pneu é virgem de mijadas, compreendeu? – O lobo me olha e não responde. – Toma. – Dou a ele um grande pedaço de carne seca. Ele pega o naco de carne com as duras gengivas, olha-me nos olhos e volta para a mata. – Bom apetite, meu amigo.

Olho novamente para a estrada. Fico com preguiça de pilotar e decido montar acampamento. Ali não tem água, mas tem sombra e, ao final, qualquer lugar serve para dormir. Mesmo que seja apenas 4 da tarde. Não tenho pressa. Não sei onde estou indo. Apenas estou indo.

Sento-me numa pedra na beira da estrada. Examino o asfalto. Tantos anos e o asfalto ainda está transitável. Não que as autoridades na época fossem cuidadosas com ele, mas hoje em dia não existe tráfego para estragá-lo. Pego a garrafa de Urucuiana e o queijo no alforje. Corto um pedaço do queijo com o canivete, boto na boca e a encho de cachaça. Engulo metade da cachaça e mastigo o queijo com o resto da cachaça. Misturo, na boca, o líquido no queijo, fazendo uma pasta. Engulo tudo junto. Muito bom. Muito, muito bom. Dou um grande gole na cachaça. E como outro pedaço de queijo. Fico ali uns vinte minutos, o suficiente para detonar 1/3 da garrafa. Se fosse antes, provavelmente ficaria meio alcoolizado. Mas agora meu mau-humor é tão forte que acho que inibe o poder da bebida.

Olho para a direita, para a esquerda, para o outro lado da pista. Viro de costas para olhar a trilha por onde o lobo entrou. E vejo, muito longe, fumaça.

Levanto. Muitas vezes as fumaças eram naturais, provocadas por combustão espontânea. Eu passava dias para encontrar a sua fonte e normalmente me decepcionava, pois nada havia. Acabei analisando os tipos de fumaça, comparando-os com a que eu fazia em minhas fogueiras. Grandes fumaças eram incêndios em matas. Fumaças brancas eram incêndios nos pastos. Fumaças que formavam uma linha andarilha, como se fosse a fumaça de um trem, eram incêndios em beiras de estradas. E outros trocentos tipos. A fumaça que eu produzia em minhas fogueiras era cinza escuro, fina, que subia e se concentrava a alguns metros acima. Era uma fumaça com personalidade.

E é exatamente este tipo de fumaça que eu vejo. Olho por alguns minutos para certificar-me que não me engano. Decido encontrar quem, ou o quê, criou esta fumaça. Arrumo as coisas e volto pra moto. Vou correndo pelo caminho que estava indo, pensando que talvez na frente haja alguma curva que me leve até a fumaça. Pelos meus cálculos ela deve estar a uns 5 quilômetros. Ando uns 25 quilômetros e vejo que só estou me distanciando da fumaça. Volto. Passo pelo local onde avistei a fumaça. Vou andando e vejo que continuo me distanciando.

- Porra, será que vou ter que procurar por dentro da mata? Digo, já cansado.

Paro a moto exatamente onde estava. Pego a katana, uma lanterna pois deve escurecer em menos de duas horas, verifico se as pistolas estão carregadas e entro na trilha do lobo. Ando uns 600 metros e vejo um arame farpado. Pego a faca na cintura e corto o arame com o gancho da faca. Continuo andando em direção à fumaça. Encontro um pequeno penhasco com um fino rio ao fundo. Procuro por onde passar. Decido, antes de tudo, tomar um banho. Levanto a camisa para cheirar o meu peito. Pareço uma academia de musculação. Cheiro de suor seco e velho. Se existirem pessoas, quero chegar sem assustar.

Desço até o rio, tiro a roupa e tomo um banho. Um bom banho. Tão relaxante e fria a água que adormeço uns instantes. Aprumo-me e volto a seguir a trilha da fumaça. Subo e desço os morros na mata. Algumas vezes as árvores não me deixam ver o céu. Mas logo vejo que a origem da fumaça está próxima. Noto que vem de uma clareira. Ao me aproximar, vejo que a clareira está repleta de grandes blocos de pedras e algumas cavernas. Algumas bem pequenas. Outras já tomadas pela escuridão. Vou andando entre as pedras, olhando em volta e procurando pessoas. Vejo nos chãos o lixo deixado pelo ser humano. Muitas construções de madeira e muitas pioneirias de acampamento. Varais, mesas, tendas. Roupas e utensílios por toda parte. Mas ninguém aparece. Decido gritar e meu grito assusta os animais ao redor, que respondem fugindo. Após a zoeira da fuga, o silêncio. Fico indignado por cair novamente na armadilha da esperança de encontrar alguém. Não existe mais alguém. Nem sei quantos anos já gastei viajando por todos os lados para ver se encontro outra alma viva. Quantas vezes não fui esperançoso e fiquei totalmente desiludido. E mais uma vez encontro os restos da morte.

Aqui devia ser mais um acampamento humano no meio do nada. Fugindo das criaturas, milhares de pessoas se alojaram nas matas. O grande erro desses grupos foi não criar um sistema de guarda incessante, pois os mortos não paravam. A gente tinha que dormir, cagar, comer, cuidar das feridas e dos feridos. Tínhamos que carregar os doentes e montar acampamentos e sistemas de defesa. E os mortos simplesmente vinham nos comer. E quando não conseguiam nos comer, ao menos davam uma mordidinha aqui e outra ali. Assim, conseguiam mais gente para suas fileiras. Demoramos para descobrir que devíamos destruir o cérebro daqueles que eram contaminados. E em menos de cinco horas, pois senão já seria aquela zona, para matar (de novo) o morto que estava entre nós.

Eu caíra novamente na triste esperança de encontrar outro vivo. E de preferência mulher, pois outro homem seria muito irônico. Antes de voltar para a moto, olho de novo para a fumaça. Vejo exatamente o local de onde ela sai. Um barril cortado ao meio com piche queimando. Este fogo poderia durar anos. Mijo em cima para apagá-lo e não alarmar falsamente um outro possível vivo que passasse por ali.

Quando alcanço a moto já passa das 7 da noite. Como alguma coisa, acomodo-me da melhor forma no saco de dormir, meio apoiado num tufo de capim-gordura que colhi para usar como colchão e bebo alguns goles da Urucuiana.

Bebo outros goles entre pensamentos inúteis. E o escuro do sono chega junto à tontura da bebida.

Giovani Iemini

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