Paixão Velada
Ela era delgada, vermelha e de cabelos excessivamente negros que desciam até as ancas. Tinha um andado diferente das outras garotas: pausado e silencioso como se flutuasse. Pouco sorria... Eu menos ainda. Elaborei plano estapafúrdio para conseguir o endereço dela: recado pelo “leva-e-traz”, não deu certo. Aviãozinho na sala de aula me custou uma orelha inchada por uma semana, e uma longa reflexão com os joelhos apoiados sobre os dentes de milho. Não sei se ela me notou, se teve pena de mim. O que sei é que quando dei por mim já trilhava ardente ao encontro do amor. Um amor verdolengo é bem verdade, não um amor maduro. Mas já era amor. Em casa minha mãe me olhava de rabicho. Meu mano, perto de mim me dizia algo. Eu ouvia-o looooooge. “Cê tá isquisito, mano.” Eu ali parado de olhos e pensamentos respondia balbuciante: “Negros. Longos e negros..., e flutua” . Ele me olhava e espanava a mão aberta diante de meus olhos. Passos macios me assaltavam sempre e sempre. Sempre os passos dela. Quebrei o pote de barro da sala. Não fugi como de costume. Minha mãe me agarrou pelo braço e suspendeu a vara de Marmeleiro vibrando como guizo de serpente. Não me picou. Olhei pra ela com o sorriso mais cândido do mundo (imagino eu), pois, a serpente ficou sustida no ar. Desolada. Tremia de emoção, e por fim abaixou-se lentamente indo se bolar pelo chão. Minha mãe soluçou e me abraçou. Eu sorria. Abracei-a com ternura. Ficamos ali um tempão. Abraçados. Ninguém entendia como no repente um menino arredio e casmurro mudara daquela maneira. É como se aquela afeição tivesse partido em escamas a velha e deixado florir nova carapaça. Meus amigos se distanciaram. Minha a fazer simpatia e a me levar ao benzedor gastava quase de todo o seu tempo. Peguei o habito de fugir às escondidas para o largo das noites estreladas. Certo dia assustei-me com algo que me cutucava os pés. Acordei molhado de sereno, os sol me aquecia docemente. Desci estremunhado escada abaixo com meu pai me olhando espantado com vara de derrubar laranja numa das mãos. Eu havia dormido no telhado (há há) foi minha resposta à sua estupefação. Ah! Aqueles cabelos! Sempre me guiando por onde eu ia. Agora mesmo, a caminho do barreiro branco (de onde voltaria com o bornal abarrotado de bolinhas de saibro torrada), com pouco ou nenhuma preocupação com os grandes problemas. Meu pensamento era um grande Albatroz a sobrevoar sob o sol e os alísios. P or volta de um mês, com as notas na escola caindo em desgraça, me vi arrastado para o lombo de uma carroça. Os chicotes estalaram e picaram as ancas dos animais. O rangido das rodas principiou uma cantiga renitente que nos acompanhou durante a viagem. Isso principiou de manhãzinha, quando o sol borrou toda a tarde de um vermelho fosco, a cantiga estacou embaixo de um enorme pe de Jamelão. Era época de frutas, pois, o chão estava repicado de frutos. Os frutos negros do Jamelão me levaram de voltas aos cabelos negros de Beatriz. O “Cura” me pôs sentado no tamborete de costas para o sol poente, à beira do riacho. Costurava um tecido roto com uma agulha que me pareceu ora de madeira, ora de marfim. Balbuciava palavras inteligíveis e balançava a cabeça num vai-e-vem que não acabava mais. Achei que a qualquer momento ele bateria com a testa na terra úmida da várzea. Quando do sol restava apenas um fiapo vermelho turvo no horizonte ele se levantou e apanhou com as duas mãos minha cabeça girando-me com toda força. Quase fui dar no meio do atoleiro de lama escura e fétida. Despertei por um momento e tive gana de encara-lo. Meu pai que observava de longe desamarrou um ar de riso depois de muitos dias. O “Cura” de aproximou de meu pai e cochichou-lhe. Seguimos viagem. Estranhei quando a carroça seguiu em direção à cidade. Estacamos na velha paróquia. Fomos recebidos pelo sorriso cansado, os cabelos alvíssimos e a corcunda do Padre Bartolomeu. Sua voz rouca nos convidou para entrar. Meu pai tirou o chapéu e dobrou-se em reverencia ao Cristo crucificado que nos observava sobre a porta. Parei e fiquei a admirar a grande imagem de braços abertos diante de mim. Um friozinho me arrepiou a nuca. Num repente virei-me para a rua como se alguém me tivesse picado a espinha. Foi a conta de ver lá sob a arvore florida ingá, na pequena pracinha, Beatriz, com seu cabelos negro quase a esbarrar em outros cabelos. Sua delicada mão lentamente procurou a outra e se apertaram. Senti um aperto no coração. Doeu muito. Instintivamente virei as costas para aquela cena e vi-me de frente com Cristo na cruz. Recolhi-me em meus próprios braços e curvei-me diante da enorme dor que me consumia. Montado novamente na boleia da carroça eu ainda soluçava abraçado às pernas. Meu queixo tiritava sobre os joelhos. O Padre em pé sob a imagem me acenou com o sinal da cruz. Meu pai assoviava na noite fresca. As cigarras desembainharam os flautins. Fiquei ainda uns dias amuado e arredio. “É o efeito dos benzimentos”. – Comentava meu pai à socapa. Minha mãe meneava a cabeça como se desconfiasse de alguma coisa. Minhas notas voltaram. Beatriz não mais acometia meu coração. Meus pais encheram de presente o “Cura” e o velho Pároco. Eu era o mensageiro, ainda por cima tinha que lhes pedir benção.
José Mattos