In vino, Vera
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância (...)
A falsa, (...) que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.”
Fernando Pessoa
Hoje, sei que andei grávida de uma coisa que nunca nasceria. Dentro do uterocárdio, alimentei-o com as mais saborosas mentiras que uma mulher pode contar a um homem. Tentativa de fazê-lo vingar, como diziam os antigos sobre a violência que é sobreviver. Um tempo em que a vida me parecia líquida e certa. Nos labirintos do meu corpo ocultei-o e a vida se resumia na posse.
Hoje, despossuída, relembro a fome de avelãs que tive dele. Mas, a boca já não se enche d'água (nem os olhos) e nem preciso fingi-lo nesse outro que me abraça. Perdi o paladar e acho até que o dom de chorar de saudade. Embora quem me conhece afirme que eu ganhei a minha vida de volta. É uma gente discursiva e séria, devem ter razão.
Às vezes, só às vezes, eu me pergunto se eles não percebem que eu inventei um dublê pra viver essa tal vida recobrada. Ela vive a vida que um dia eu vivera, enquanto a observo se movimentando dentro do meu silêncio. É bonita essa mulher, decidida a cumprir o meu destino de boa moça. Empenhada em realizar sonhos que sonharam para mim.
Hoje, não sonho e nem acredito, mas ela não permite que ninguém se dê conta disso. Vestida com as minhas incertezas, me disfarço na sua eficiência. Já não há bichos, sequer estrelas, no corpo dela. Às vezes, só às vezes, eu me pergunto se ninguém percebe que eu não sobrevivi, que é falsa essa mulher que vive a vida que finjo viver.
Eu gosto dessa mulher que me inventei e que se presta aos papéis que eu não suportaria representar. Contabilizando tudo, devo a ela muito mais do que a harmonia na mesa de jantar e o gozo mentido. Não fosse ela tão conivente com as minhas mentiras jamais estaríamos aqui, nesse civilizado almoço familiar, comemorando os meus (dela) sete anos de felicidade conjugal.
Não fosse ela tão ordeira e consciente dos seus deveres, não me vigiasse tanto, o fogo latejante do corpo que partilhamos poderia novamente se alastrar. O fogo que faria derreter o chumbo das pernas e, luz, talvez revelasse que a flor do desejo ainda brota das entranhas, poderosas suas raízes de avelã. Sentinela, pensando no futuro, essa mulher elabora um pretérito-mais-que perfeito negando-me até mesmo o direito à memória.
Hoje, estão todos felizes, brindando o meu retorno à normalidade, ao universo das pessoas que sabem fazer exatamente o que se espera delas. O sorriso cicatrizado no rosto, ela-de-mim também levanta a taça, que, por estratégia de segurança, contém suco de uva. In vino, Vera.
Sandra Regina Sanchez Baldessin