Zé Bufinha
Meu velho amigo Bartolomeu muitas vezes me convidara a passar uns dias em sua casa, na fazenda Monte Belo. Eu não conhecia seu paraíso.
Era como ele costumava chamar a sua propriedade, e decidi ir visitá- lo em um certo verão. Cheguei no ônibus do meio dia e a primeira cara que avistei foi a do Seu Bartolomeu recostado no balcão do boteco que servia de rodoviária para atender o pequeno vilarejo. Fui recebido com visível alegria de quem há muito tempo um amigo espera. Em seguida abriu os braços e me apresentou à vasta planície verde, salpicada de pequenas elevações que, ao longe, era consumida pelo horizonte. Depois, apontando-me uma estradinha de terra vermelha, disse:
- Vamos nós rumo ao paraíso, meu camarada! - e continuou enfiando a gente para as histórias do passado e coisa e tal, velhos amigos que morreram, enquanto o velho Pick-Up nos sacolejava de fazer tremer o vozeirão de Bartolomeu. Espreitando uma brecha em seu enfático discurso, perguntei:
- E o Zé, aquele que estudou com a gente no colegial, que era todo cheio de nove-horas e se intitulava dizendo \"Eu sou o Zezinho das moças\"?
- Bem, conhece o Zé, não? E se recorda das canastrices e da língua que ele tinha e que, de tão grande, não cabia na boca? Pois bem, há uns três anos ele saiu com a conversa na rua de que tinha beijado a filha do Seu Antenor...Conhece a fera que é o homem. Até ai tudo bem se a tal conversa não chegasse toda amarrotada lá no ouvido do pai da moça. Ao par do acontecido, Seu Antenor buscou providência. Primeiro encostou a filha contra a parede e deu-lhe um esbregue. Ela, lisa como uma enguia, escapuliu-lhe das garras.
- Valha-me Deus, meu pai! Ele é quem anda me cercando, me olhando com aqueles olhos molengos igual a gato querendo apanhar passarinho e me assoprando beijinhos.
-- Mas é muito descaramento desse cabra! - esbravejou Seu Antenor, botando as idéias para funcionar. Mandou chamar o Zé para a fogueira de Santo Antonio, mas que fosse uns dois dias antes, que era para ajudar nos preparativos da fogueira. Que não se preocupasse com pouso e comida.
A princípio, Zé recebeu a notícia meio ressabiado, mas logo em seguida aqueles olhinhos verdes lhe vieram à mente, aquela cinturinha cingida pelo vestido florido fez o moço suspirar fundo. Chegou meio sem jeito e ficou ali banzando pelo terreiro. Foi convidado para entrar e desconversou, ajeitou-se à sombra do Jamelão, olhando de revés, até que seu Antenor assomou-se no caminho vindo do manuseio da vacada. Depois do jantar servido o seu Antenor olhou para o céu e falou:
- Hoje tá bom para caçar um bichinho - disse, jogando verde, preparando a laçada. Desconfiado do acolhimento tão amigável e diante da proposta do Seu Antenor, Zé tirou o corpo fora:
- Pois é, Seu Antenor, se eu tivesse trazido minha espingarda, até que aceitaria.
- Por isso, não - atalhou Seu Antenor segurando o fugitivo pelo rabo - Jorge! Traga aquela espingarda pro moço.
Aquilo o amofinou, sentiu-se boi encurralado. Logo ele que se pelava medroso de bicho e noite. Ainda mais que, pela região, tinha onça das grandes: pintada e lombo preto da mão torta, capaz de derrubar um garrote erado de um só pescoção.
A cada passo que eles se distanciavam da casa e adentravam no mato, Zé ia se arrependendo da sua tagarelice, perdendo o amor pela moça,
esquecendo os olhinhos verdes e a cinturinha de pilão. Tremelicou as pernas. Seu Antenor estacou cheirando o vento igual a cão de caça:
- É ela. Escute o latido da cachorrada. Zé ficou pequeno, teve suor frio nas mãos e o suspense botou fogo nas suas orelhas quando ouviu o esturro da bicha:
- Que é isso, Seu Antenor?!
-- É a lombo preto, pelo esturro. Não é bonito o esturro da bicha?! Vem morrer na boca da cartucheira. Só não pode é errar o primeiro tiro. Acocora-se e espere que a bicha vem bufando. Escuta.
O tropel da quebradeira de mato, o esturro da onça e o ladrido dos cachorros buliram com os intestinos do Zé, deixando-o num pé e no outro, bufando e olhando esquisito para Seu Antenor como se quisesse passar uma mensagem do além, virando os olhos como se estivesse recebendo o caboclo do mato no lombo.
O diabo do riso inchava Seu Antenor por dentro, inflando as veias do pescoço, crescendo veias vermelhas na testa. No que ele tentou se esconder atrás do Seu Antenor, este se aproveitou da aproximação do tropel que vinha derrubando o mundo, berrou fingindo assustado e saltou longe disparando a cartucheira de dois canos para o alto:
- Buuuuuuuummmmm!
O tropel do tiro fez o pobre do Zé perder o norte da vida, vestiu a cara na capoeira e, na carreira louca, perdeu as botas nos buracos de tatu. A espingarda foi achada uma semana depois, pendurada em uma galha de barbatimão. O homem azedou no mundo e, por malvadeza, o Seu Antenor o acompanhou bufando e berrando bem no cangote do Zé. Um tropel dos diabos:
- Ó a onça Zé! Corre que a bicha vai comer a gente, Zé! - Deu dó de ver. O camarada enveredou em uma corrida de pegar veado pelo rabo. No meio do cerrado só se ouvia o calcanhar do homem socando a terra e os estalos de mato quebrando e as ramagens farfalhando.
Ao chegar em uma cerca de arame farpado, já perto da sede da fazenda, Seu Antenor, que vinha na cola do Zé Bufinha, rosnou imitando a bicha, o Zé Bufinha deitou de lado para varar a cerca. O alarido cresceu.
O jeans do nosso herói se enroscou no arame farpado e ele se agarrou a uma gritaria:
- Pode me comer, onça! Mas fique sabendo que vai comer um homem de verdade! - gritava o desvalido de razão, aprontando um verdadeiro escarcéu, sendo acalmado apenas quando toda a família, inclusive Seu Antenor, desenroscou o Zé Bufinha da cerca. Todo lanhado de arame, e o pior: com os restos da calça recheados de bosta.
Uma vez liberto do arame, Zé Bufinha correu como um potro rebelde ganindo e chorando aos prantos, espargindo merda por onde passava. Deteve-se em sua casa somente o tempo de livrar-se da fetidez e despedir-se da mãe aturdida e deitou o cabelo no mundo. Até hoje não se tem notícia do Zé Bufinha.
José Mattos
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