ELE-ELA
(Baseado no conto ONDE ESTIVESTES DE NOITE de Clarice Lispector.)

Silêncio em casa. Observo a mosca morta, sendo carregada por agitadas formigas. Percebo que o silêncio não é calmo. Tudo está em movimento.
Quando estou sozinha, penso no Alberto. Ele faz os meus pensamentos ficarem caóticos.
Hoje de tarde fui à casa de praia. Minha mãe e ele-ela me esperavam. Como sempre, foi tudo maravilhoso.
O mar estava calmo. Engraçado, tenho mais medo do mar tranqüilo do que quando está de ressaca. O calmo é subjetivo e diabólico, quando entramos somos queimados por água-viva, puxados por correntezas e buracos de areia. O revolto é objetivo, mostra logo sua carranca. Quem entra, sabe muito bem os perigos que enfrentará.

O telefone tocou. Parei de escrever o diário. Era a polícia. Fiquei sem ação, não quis acreditar no que estava acontecendo. A ficha só começou a cair, quando cheguei à casa de praia. A minha mãe estava transtornada, haviam matado o nosso anjo da guarda. Chorei junto com ela, quem poderia ter feito isso.
Quando estávamos almoçando, ele-ela estava triste e me pediu para cuidar da minha mãe. Parecia que já estava sabendo o que lhe iria acontecer.
A casa estava toda revirada. Me senti violentada. Comecei a recordar de tudo que passei neste lugar. Almoços, festas e os ensinamentos dele-dela. Alberto apareceu, não pude resistir e o abracei forte.
Não quis ver o corpo.

As primeiras lembranças que tenho são longos cabelos esvoaçantes, músicas delicadas que eu não entendia, mas gostava; lençol branco e suspenso, que faziam ondulações que pareciam ondas e que eu corria para cama, tentando pegar jacaré.
Perguntava a minha mãe: - Ele é homem ou mulher?-. Ela mandava calar a boca. Dizia que o patrão-patroa era uma boa pessoa.
Quando saímos juntos, as pessoas nos olhavam assustadas. Teve uma vez que um grupo de homens nos ameaçaram. O meu olhar de criança não entendia as cores difusas dos acontecimentos. A única certeza que tinha, era que ele-ela sempre iria proteger a mim e a minha mãe.
- Seus olhos são terríveis e belos. Eles penetram na nossa alma e a torna em alimento para sua beleza. Muitos o odiavam, sentiam atração e invejava da liberdade que ele-ela tinha. Ninguém sabia a sua origem. Diziam que fez pacto com o demônio.
Um dia, lendo um livro, encontrei um conto Onde estivestes de noite. Mostrei a ele–ela, que ficou comovido com a comparação que fiz.

A minha mãe chamava-se Augusta, os pais morreram cedo. Morou um tempo com uma tia, que faleceu alguns anos depois. Casou com um homem boêmio: - A única coisa boa que ele me deixou, foi você filha. -. Fui tão amada, que nunca senti falta de um pai.

Alberto chegou de mansinho, quando percebi estava apaixonada. Insistia. Estava sempre ao meu lado. Não queria deixar ninguém entrar no meu mundo íntimo. Os únicos que podiam, eram minha mãe e ele-ela.

A lição maior que ele-ela me passou, foi amar as coisas belas e abstrair o grotesco. Fazia tudo com delicadeza: ritual para se vestir, preparar à mesa e decorar com harmonia as flores pela casa. Sempre dissera: - Nada é simples.

Mataram pôr ganância. Foram atrás de um boato que ele-ela guardava jóias e muito ouro no cofre do escritório. São tão insignificantes, que não dá nem para sentir ódio.
Ele-ela vele o meu sono. Proteja-me das coisas feias da vida.

Eduardo Oliveira Freire

« Voltar