Depois de Lula

              Já se fora a tempo das CPIs e das revoltas populares.
              Há dez anos ninguém denunciava nada; ninguém reclamava de nada.
              A taxa de mortalidade infantil beirava o zero.
              O Ministro da Saúde deveria mostrar-se satisfeito, porém, na outra mão, o relatório da natalidade beirava 1%, pelo décimo ano consecutivo.
              Há anos não se reclamava da falta de vagas nas maternidades públicas nem nas UTIs-berçário; nas policlínicas acabara a fila de espera por pediatras e obstetras; desaparecera a tal da “demanda reprimida”.
              O ministro jantou aquela noite com um ex-presidente sociólogo, seu amigo, com quem discutiu o estranho fenômeno.
              O amigo, entendido em estatísticas, acrescentou-lhe novos fatos:
              A evasão escolar tendia a zero.
              As escolas públicas de primeiro grau estavam ociosas.
              Ninguém sentia falta do extinto Bolsa-Escola. Não se falava quase de trabalho infantil. A taxa de gravidez na adolescência despencara.
              As delegacias não registravam quase queixas de trabalho infantil, prostituição infantil ou pedofilia há uma década,
              - Os bandidos se regeneraram?
              - É mais simples que isso: não há crianças a explorar.
              O ministro reexaminou cuidadosamente seus relatórios. Como não percebera antes? Nos últimos dez anos, só os ricos se reproduziram!
              A classe média, que vinha casando progressivamente mais tarde e tendo o primeiro filho após os trinta anos, casava-se agora depois dos quarenta e desistia do herdeiro.
              Os pobres se agrupavam em dois ou três casais para compartilhar um mesmo teto: pais com filhos, noras e genros ou irmãos com cunhados. Casais sem filhos. Provavelmente também sem cães ou gatos.
              Os pobres – percebeu o ministro – pararam de procriar.
              A qualidade de vida não melhorara em nada.
              O desemprego continuava alto porque o grande mercado de trabalho das classes menos favorecidas, a construção civil, estava estagnada.
              Os bancos e financeiras passavam por tempos difíceis, pois muitos aposentados e pensionistas haviam morrido inadimplentes e os novos aposentados e pensionistas não requeriam mais empréstimos. A procura por financiamento de imóveis, estudos, construções, planos de saúde, compras de todo tipo - exceto cruzeiros de luxo e pacotes internacionais de turismo - cessara por completo.
              O MST não existia mais.
              A Febem fechara suas unidades infantis.
              Os traficantes imigravam em busca de novos mercados consumidores.
              A violência permanecia alta com o perfil de crimes diferenciado, por não existirem mais “aviõezinhos” nem “trombadinhas”.
              Não havia mais meninos e meninas de rua, pois não havia mais meninos e meninas pobres.
              O sociólogo suspirou; sua tristeza se dissiparia ao regressar a Paris e passear ao longo do Sena.
              O ministro, confuso, convocou uma equipe de pesquisa e saiu pessoalmente em campo, a buscar a resposta.
              Dona Francisquinha, uma velha cega que morava em uma aldeia de pescadores, sábia pela idade avançada e por enxergar mais do que muita gente que nascera com dois olhos na cara, explicou:
              – O povo desistiu.

Sonia Rodrigues

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