Estupro

Que sentimento é esse? O que exatamente estou sentindo? Precisava descobrir para a sua sanidade mental e física. Sempre fora tão equilibrada, serena. Agora esse desconforto brutal? A velha tia não tinha ensinado ? Pra tomar o remédio certo é preciso, antes, descobrir a doença. Se não você toma remédio errado e “pega” outra doença. Era o que estava fazendo nesses meses todos. Descobrir o sentimento que toldava a sua mente, vida, des-vida... Tudo! Sentia algo terrível, mas não sabia exatamente o que era. Portanto, não tinha como se curar, estava tomando é o remédio errado, nas palavras da sua tia: estava “pegando” uma outra doença. E pegou mesmo! Adoeceu de alma e, o corpo correspondeu, na mesma altura. Ninguém atinava a causa, até colocaram a culpa num pobre vírus desconhecido (que nem chegava a ser embrião). Para o desconhecido a recomendação usual: vitamina “C” e cama!

E lá estava ela “encamada” e com a tevê ligada, naquela terça-feira, abençoada! TV Discovery para ser exata. Embora doente da alma, não estava doente da mente e apreciava, mesmo nas más horas, um bom documentário. A reportagem era terrível, sobre violência sexual, ou nas palavras certas: estupro. Estava para mudar de canal quando começou a ouvir o depoimento da vítima, uma voz sem rosto, escondida por uma penumbra proposital das câmeras. Ouvindo aquelas palavras, como a vítima se sentira no momento da violência e, principalmente, o gosto amargo do dia seguinte, gelou! Ficou ali escutando, absorvendo cada palavra, sugando-as! Quanta similitude! Compreendia, agora, perfeitamente o sentimento que lhe trancava a alma! Passara a vida toda habitando o dia seguinte da sua história.

Era esse o sentimento.

Sentiu uma espécie de nojo e, ao mesmo tempo, admiração pela sua pessoa. Afinal chegara até ali incólume. Ninguém, a não ser ela mesma, sabia da verdade. Muitas vezes pensara em contar pra alguém, até tentara nas diversas vezes que fizera terapia, mas só ficava na intenção, geralmente levava o psicólogo ou o psiquiatra no bico. Fora vitima de um estupro, não físico, mas de alma, e o estupro havia sido praticado por ela própria, vitima e algoz de si mesma, trancafiada na covardia.

Sua história! AH! Sua história. Corriqueira, meia tigela diria a mãe, meia sola diria o pai.

A verdade límpida e cristalina, escancarada, sem pudor, ali, na sua frente! Sentiu-se confortada, agora podia tomar o remédio certo, o diagnóstico tinha sido concluído, com muito estresse e dor, é verdade, mas tinha sido concluído com êxito. Sorrindo tristemente e, pela primeira vez em muitos anos sem ajuda de qualquer comprido, adormeceu. Acordou ainda triste, mas serena. Compreendia que não podia fazer nada para modificar essa sua realidade. Lavar a alma depois de um estupro não é tarefa fácil, mas todo o sabão e detergente da noite anterior ajudariam na limpeza diária e conservação.

Não respondeu ao chamado da mãe, enquanto descia as escadas da velha casa, carregando uma grande mala. Da sacada seu pai avistou-a já na esquina entrando num táxi. Retirou-se da vida dos dois, com muita naturalidade, de terno e gravata.

Sandra Falcone

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