SER ARROZ OU SER CAFÉ

“Vejam só... Que história boba eu tenho pra contar. Quem é que vai querer acreditar?”

Conheci uma menina morena, cabelos escuros, na altura dos ombros. Um rostinho bonito, porém simples, quase comum. Olhos escuros e pequenos, quase da cor do café.

Café? Sim... Café!

Na multidão, ela seria apenas mais um pé de café perdido num cafezal. Sabe, os cafezais são imensos! Tão imensos que pouquíssimas pessoas conseguem ver a diferença que há entre os pés de café. Cada um forma diferentes desenhos com seus galhos, verdadeiros emaranhados de caminhos, de destinos e de futuros, que cada arbusto vai criando para si. E os grãos presos em seus galhos são as obras que cada um desses possíveis caminhos vão produzindo após cada florada.

São infinitas as possibilidades de tons de cada grão, que variam do verde ao vermelho. Do nada ao tudo. Impossível mensurar as variantes entre esses dois espectros. Mas quem olha o cafezal de longe, não é capaz de perceber quanta beleza há escondida em cada pé de café.

Eu encontrei um pé de café muito especial. Não que eu seja melhor observadora que os demais. Nada disso. Foi pura sorte mesmo. Foi por acaso que, passando pelo cafezal, esbarrei num galho e virei o rosto para observar quem estava mexendo comigo.

Era ela, a menina morena. Não demorei a perceber que aquele pé de café era diferente dos demais. Observei os galhos, os grãos e as cores que se distribuíam harmoniosamente em cada ramo. Conversei com ela e aos poucos fui percebendo que a maior parte de seus galhos não cresceram aleatoriamente. Foram detalhadamente arquitetados para chegar àquele desenho. Excetuando-se, obviamente, uns poucos galhos que são comuns a todos. São as resultantes de algumas arbitrariedades da vida. Caminhos compulsórios que seguimos sem questionar para não sermos jubilados da sociedade.

E os grãos? Ah... Foi com os grãos que me surpreendi ainda mais. Dignos de irem direto para as xícaras de porcelana finíssima dos deuses. Privilégio concedido apenas ao apurado paladar das criaturas celestiais.

Mas um grão, de um vermelhíssimo vermelho, chamou-me especialmente a atenção. Tinha uma forma diferente dos demais. Era perfeitamente arredondado em um dos seus lados, e do outro, um contorno côncavo que parecia adaptado para um uso específico. Cismei com aquele. Analisei-o criteriosamente. A princípio com estranheza, depois com uma curiosidade tremenda. Não pude resistir. Quis saber o que fazia aquele grão aparentemente deformado no meio de tantos grãos de finíssimo acabamento. Um pouco sem graça, pois mal conhecia a menina, perguntei sobre aquele.

Ah... (o ah... foi de uma naturalidade que irritou minha inteligência). Esse grão aqui, - e fez um carinho no grãozinho torto – é o meu sonho. Sonho? Não entendi. Com tantos grãos perfeitos em tantos galhos lindamente desenhados, o sonho dela era aquele grão todo deformado? Quase ri. Que tolice... Pensei.

E ela continuou: o meu sonho é ser palhaço. Veja como esse grão é idêntico a um nariz de palhaço. Virou-se por uns instantes e colocou-o em seu próprio nariz. Colocar o nariz é um ritual de suma relevância. Deve ser feito às escondidas porque faz parte dos rituais palhaçais.

Palhaça? (conjeturei mentalmente) Só podia ser uma palhaçada dela. Sim, porque entre os diversos grãos que carregamos em nossos galhos, muitos são obras das palhaçadas que fazemos na vida. Eu tenho uns grãos desses no meu pé de café. São palhaçadas que levam ao riso, que dá alegria. Algumas são zombeteiras, mas quem tem um bom coração entende o sentido de algumas zombarias bem intencionadas. Outras são palhaçadas mesmo, aquelas que fazemos e rimos sozinhos, pois não têm graça pra mais ninguém.

Por uns instantes, fiquei a imaginar o que seria ser palhaço de verdade. Lembrei de músicas e poesias que falam de palhaços. Então, mentalmente, elaborei minha teoria sobre palhaços. Palhaços são tristes, desenham em si mesmos aquele sorriso, para fingir uma alegria que não têm. Palhaços são tolos, vivem às custas das risadas alheias. Palhaços são solitários, depois do espetáculo, tiram a maquiagem e vão para seus camarins, onde dormem sozinhos. Palhaços são nômades, vagam de um canto ao outro do mundo, sem criar raízes. Palhaços são pobres, distribuem risos em troca de aplausos, e morrem na mais triste miséria.

Nada disso parecia combinar com ela. Que paradoxo! Mas olhando o sorriso que surgia nela quando falava da ânsia em ser palhaça, e o brilho que cintilava em seu olhar, Seus planos, gestos meio desordenados, desenhando no ar aquele sonho. Entendi que não era palhaçada. Era sério, real e, acima de tudo, era mágico. Tão mágico que de repente, saímos do cafezal e fomos parar numa plantação de arroz.

Arroz?

Pronto. Agora ninguém entende mais nada.

Calma. Vou tentar explicar isso. Segundo a menina morena, existem dois tipos de pessoas: as que são arroz e as que fazem diferença. As que são arroz estão em todo lugar, em quase todos os pratos. Estão também em casamentos, jogados ao léu numa simpatia tola e comprovadamente ineficaz para garantir a felicidade dos nubentes. Existem também alguns tipos que apenas fazem volume entre os convidados. Tem ainda, o famoso arroz de festa. São os piores, pois não fazem diferença alguma. Ninguém nota quando chegam, tampouco quando se vão. O arroz, não obstante seu aspecto nutritivo, está banalizado. Bilhões e bilhões de pessoas no mundo transformaram-se em arroz.

Mas existem outros grãos. Grãos que fazem diferença porque caíram no esquecimento. Porque foram substituídos pelo mais prático, pelo que dá menos trabalho, pelo conveniente. Dentre estes grãos que fazem diferença, há o milho, por exemplo, o grão dourado. Hoje reduzido apenas à produção de rações para animais. A soja, outro absurdo! Não obstante o valor nutritivo desse grão, também virou comida de bicho. Tudo porque nos acostumamos a ser arroz! E o grão de bico? Tem pessoas que nem sabem o que é isso. Grãos valiosos, raros... Tem gente que nem se lembra mais que eles existem. Por isso vamos desistir deles e vamos a outro grão mais conhecido, mais familiar. Um grão que às vezes nos esquecemos que é grão, porque nos acostumamos a pensar nele apenas como café.

Então, as pessoas que fazem a diferença são café. Veja bem, não um café qualquer. Mas, um café muito vermelho e moldado pelo capricho da natureza, de modo a se transformar em nariz de palhaço. E pode levar anos para nascer nos nossos galhos um grão como esse. Às vezes temos que esperar tanto... Ou pior ainda, eles aparecem e nós não os percebemos.

Até então, exatamente como você, que está lendo essa bobagem, eu ainda não tinha entendido muito bem onde ela ia chegar.

Mas ela continuou. Há muito tempo desejo fazer da minha vida alguma coisa útil. Eu retruquei - mas eu já vejo em seus galhos grãos maravilhosos, obras em que você dedicou seu tempo, sua atenção... Eu sei – ela continuou – mas eu ainda não consegui meu maior desejo. - Qual desejo? – eu já estava curiosíssima acerca de toda aquela narrativa. Eu quero ser doutora. Estou fazendo um curso. Tive até que fazer uma prova para ser aceita no curso. Havia questões de múltipla escolha, e até redação. No começo fiquei com medo de não passar na prova, mas fui aceita. Então em breve terei meu diploma de Doutora.

Doutora?

Senti uma certa pretensão por trás desse desejo. Um discurso tão lindo sobre ser arroz ou fazer a diferença. Sobre a demora de uma oportunidade e, finalmente, ver surgir um grão de café especialmente adaptado para um nariz. Um amontoado de analogias que me deixaram comovida... E de repente olho para ela com um ar desconfiado. E era apenas aquilo? Ela queria um título de Doutora? Quem sabe está fazendo doutorado. Talvez uma monografia sobre a depressão dos palhaços. Sim, sim. Os palhaços são na verdade, uns deprimidos. Ela deve ser uma deprimida também. Não, não. Ela não tem nada de deprimida, dava para perceber. Então o que essa maluca pretende?

Eu vou me formar, logo. Vou ser uma Doutora da Alegria.

Emudeci!. Quase não tinha coragem de olhar mais nos olhos dela (olhos quase da cor do café). Lembrei-me das crianças nos hospitais. Olhinhos sorridentes com as palhaçadas dos Doutores da Alegria. Aqueles falsos (ou verdadeiros?) doutores, de jaleco branco, estetoscópio de brinquedo pendurado no pescoço. Sabe qual? Aquele que faz “toim-toim” no coração dos “pacientes”. A cara pintada, e o nariz. Uma bola vermelha da cor daquele grão de café, presa por um elástico, que eles próprios puxam e repuxam, apenas para arrancar um sorriso de uma criança doente.

Entendi imediatamente que o curso era, para ela, apenas um detalhe, totalmente irrelevante e desnecessário. A menina morena, de olhos quase da cor de café, já nascera palhaça, mas ela mesma não sabia. Posso afirmar isso porque lembrei, de repente, de uma característica que é fundamental para ser palhaço. Lembrei-me por causa dos olhinhos brilhantes dela, enquanto ela detalhava as atividades de seu “doutorado”.

Intimamente eu senti um enorme constrangimento sobre minha teoria anterior sobre o que é ser palhaço... Porque me lembrei da principal habilidade exigida para ser um verdadeiro palhaço. Ser palhaço se resume em ser ladrão, mas um ladrão muito especializado.

É preciso saber roubar, para ser um verdadeiro palhaço. Porque os palhaços são ladrões de corações. A menina morena, de olhos quase da cor de café, tinha acabado de roubar o meu, e não precisou de nenhum diploma para fazer isso. Ela, realmente não é arroz, é café.

Vera Morais

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