Um ano...
Ontem fez um ano que você partiu e me deixou.
Deixou-me sem rumo, vazio, como um barco que deixa de avistar o farol ao norte. Como a neblina que cobre a estrada no inverno. Na tua ausência perdi meu chão.
No nosso apartamento tudo é você. As fotos no mural postado na entrada, caleidoscópio de cores que me corroem aos poucos. O azul do mar, o verde dos vales, o cinza do asfalto, tudo se tornava tão supérfluo quando você sorria para a máquina. Nada mais era tão lindo, tão intenso. Todos os porta-retratos intocados na mesinha de cedro, sob o centro branco de crochê, trazem as pegadas cravadas por teus pés no meu peito, as marcas do Messias na areia santa. Não abro mais as janelas, acendo velas no pequeno oratório de vossos retratos, ofereço rum aos meus demônios e rogo à Virgem pela volta do meu bem-querer. Há um ano anseio por seus passos em vão.
Teus quadros, tuas digitais no vidro das molduras, a lembrança do teu seio na textura da parede. Meu cão-guia. Noto que a vida se esvai pelos meus poros, a cada volta dos ponteiros me enfraqueço pela ausência. E para isso não há cura.
Quando dói muito ganho a rua, olhos famintos nas sombras noturnas. Mendigos ou vampiros? Que venham. Nada tenho mais a perder. Mantenho o cinismo, os olhos rubros e trago nos ombros os traços deixados pela passagem do sofrimento sobre meus ossos, tal qual um trator numa lavoura de arroz. Compro um maço de cigarros, sinto teu gosto a cada tragada, escarrada negra de saudade nas sarjetas úmidas do centro. Todos os bares são meus companheiros, garçons se tornam psicólogos, salta um filé à milanesa para o distinto. Como se fosse possível saciar o apetite voraz das minhas dores. Encharco minhas mágoas com cerveja, cachaça, uísque sem gelo, vodka nacional. Geralmente desperto, há uma mulher ao meu lado e nunca sei onde estou. É quando atrito o que resta de minha dignidade na sua vagina e afrouxo as cordas da tristeza vibrando-lhe os punhos cerrados na face. E choro à beira da cama quando me vejo só, sem dinheiro e sangrando por dentro, estocadas cortantes de realidade.
Não consigo ficar distante das recordações por muitas horas. Logo estou aos pés da tua santa imagem, entorpecido. Nunca mais ouvi o Chet Baker cantando “Time After Time” ou o Chico Buarque cantando teu doce nome, lembrando de teus olhos fundos e de que, talvez, o tempo tenha mesmo passado na janela de nossas vidas e sequer esboçamos reação. Nunca mais bebi vinho chileno, sequer comprei tuas tâmaras secas no mercado e guardei a antologia do Drummond no fundo do armário. Nunca mais tomei café na padaria, nunca mais os filmes do Truffaut nos cineclubes da Paulista ou as caminhadas nos parcos parques da cidade. Não faço mais a barba e tento congelar os restos do nosso último orgasmo numa ducha fria diária. Durmo no chão desde a primeira noite sem você, o colchão é rocha embrutecida pela ausência do aroma suave de tua pele. Não uso cobertores, passo frio nas noites de julho ansiando por tuas carícias e tua nudez, lava vermelha do Etna sobre meu corpo marcado pelas chibatadas de memórias torturantes. Vivo numa caixa, onde o senhor da razão dilacera vísceras, onde as lembranças mutilam a esperança, onde a guerra nunca dá chance que a paz repouse pelas pradarias desertas, onde resido desde a tua partida. Onde o ar que exalo é mais podre. Ah, se não tivéssemos tido aquele atrito. Se você tivesse baixado os olhos quando nos exaltamos todas as minhas noites continuariam sendo suas, e teu hálito traria o ar primaveril do amanhecer para florir novamente os sulcos deixados pela peste, que me cegou e plantou as trevas no meu dezembro.
Hoje faz um ano que você partiu. E me deixou.
E talvez eu nunca entenda porque puxei aquele gatilho.
Luís Fernando Pinotti Silva